Ele escreveu o anúncio com mãos que tremiam. Procuro esposa, tenho terra, trabalho, respeito para oferecer. Não mencionou a solidão que devorava suas noites. Não mencionou as cicatrizes que faziam crianças chorarem. Não mencionou que havia desistido de ser amado. Sete mulheres responderam. Sete mulheres fugiram em menos de um dia.

 A oitava foi diferente. Chegou sem bagagem pesada, sem ilusões frágeis. Olhou para o sertão que assustava as outras e viu beleza. Olhou para o rosto que espantava as outras e viu reconhecimento. “Eu conheço você”, ela disse. E a voz tremia não de medo, mas de certeza. Você me encontrou perdida numa tempestade faz 12 anos. Eu tinha 16. Você salvou minha vida. Teodoro não se lembrava.

 Havia salvado gado, consertado cercas. vivido 1 dias iguais. Como ia lembrar de uma menina numa tempestade? Mas ela lembrava e tinha voltado, não para pagar dívida, mas porque reconheceu nos olhos dele a mesma solidão que carregava na alma. Fique, porque esta não é só uma história de amor. É uma história sobre duas pessoas que precisavam ser encontradas, que se salvaram sem saber, que construíram um lar onde só havia deserto.

 Se você aprecia histórias de época que tocam a alma, inscreva-se no canal Contos de Época e ative o sininho para não perder nenhuma narrativa. Conte-me nos comentários de onde você nos acompanha hoje. Todas fugiam. Algumas nem esperavam o sol nascer. A carroça parava diante da casa de Taipa e antes que o carroceiro descesse as malas, a mulher já havia decidido que não poderia ficar.

 Diziam que a casa cheirava a couro velho e solidão, que o vento da cainga batia em suas paredes, como se o sertão inteiro quisesse arrancá-la da terra, e que dentro vivia um homem com o olhar quebrado e cicatrizes que atravessavam seu rosto como lembrança que não sara. Seu nome era Teodoro Campos.

 E embora a vila o conhecesse como o vaqueiro das terras esquecidas, poucos sabiam quem ele havia sido antes do acidente. Aqueles espinhos de mandakaru haviam devorado tudo, sua noiva, sua esperança e metade de sua fé no mundo. Desde então, vivia entre a poeira e o sol inclemente, na fazenda que ele mesmo reconstruíra com as próprias mãos.

 só descia à vila uma vez por mês para comprar farinha, salumo. Nunca falava mais do que o necessário. Até que um dia, cansado do silêncio, escreveu uma carta. Era breve, quase desajeitada, como se cada palavra lhe pesasse. Procuro uma esposa. Não prometo riqueza, apenas teto e respeito. Minha casa fica no sertão.

 Se alguém desejar ficar, que venha. deixou-a no mural do correio junto aos anúncios de trabalho e avisos de feiras. E durante semanas nada aconteceu até que a primeira chegou, depois a segunda e a terceira. Todas subiam com promessas e desciam com medo. Ninguém suportava a solidão, ninguém suportava o calor e, sobretudo, ninguém suportava as cicatrizes.

 O sertão era implacável naquela época do ano. A terra rachada se estendia até onde a vista alcançava, interrompida apenas por mandacaros retorcidos e juremas secas que se agarravam à vida com teimosia. O céu era uma lâmina de aço derretido, sem nuvens, sem piedade. Os pássaros voavam baixo, procurando sombra, e o gado magro pastava o que restava de capim queimado pelo sol.

 A fazenda de Teodoro ficava a dois dias de viagem da vila mais próxima, escondida entre morros de pedra e cactos. A casa principal era de taipa grossa, com telhado de palha de carnaúba e janelas pequenas para manter o calor do lado de fora. Ao redor, currais vazios testemunhavam tempos melhores, quando o gado era farto e a chuva vinha no tempo certo.

 Agora, restavam apenas algumas cabeças teimosas, e a horta que Teodoro insistia em regar com água do poço, embora soubesse que cada balde era um luxo. Ele tinha 35 anos, mas aparentava mais. O sol havia curtido sua pele até torná-la cor de couro, e as rugas ao redor dos olhos contavam histórias de dias, olhando para o horizonte à espera de nuvens que nunca chegavam. Era alto, de ombros largos, moldados por anos, carregando fardos e arando terra ingrata.

 As mãos eram grossas, calejadas, com cicatrizes de trabalho que se entrelaçavam com aquelas outras cicatrizes, as que ninguém queria ver. As marcas começavam na têmpora direita e desciam pelo rosto em três linhas irregulares, cruzando a bochecha até quase alcançar o queixo. Eram fundas, esbranquiçadas pelo tempo, mas ainda gritavam a violência de como foram feitas.

 Alguns diziam que parecia ter sido atacado por uma onça, outros que carregava maldição. Mas a verdade era mais simples e mais cruel. eram marcas de espinhos de mandakaru, aqueles espinhos longos e afiados como facas que o haviam rasgado quando tentava salvar seu gado de um despenhadeiro durante a última grande seca. havia perdido metade da boiada naquele dia e perdido também a mulher que iria desposá-lo.

 Joana era seu nome, filha do dono da venda, moça bonita, de olhos castanhos, que havia prometido esperá-lo. Tinham acertado o casamento para depois da colheita, quando ele teria dinheiro suficiente para dar-lhe uma vida digna. Mas a seca veio como praga, levando plantação, gado e esperança.

 No desespero de salvar o que restava, Teodoro havia perseguido as rezes assustadas pelo barranco acima, sem perceber que o caminho estava bloqueado por um mandacaru gigante, velho como o sertão. O tombo foi brutal. Caiu de costas sobre a planta e os espinhos o atravessaram como lanças. Os vaqueiros que o encontraram disseram depois que parecia um santo martirizado, pregado na cruz verde daquele cacto monstruoso.

 Levaram três homens para arrancá-lo de lá e ele desmaiou duas vezes de dor antes de chegarem à vila. A febre durou semanas. Quando finalmente abriu os olhos, metade do rosto estava enfaixado. O curandeiro da região havia feito o que pôde, usando ervas e rezas, mas as feridas eram profundas demais. Quando tiraram as ataduras, Teodoro pediu um espelho.

 O que viu foi um estranho olhando de volta, um homem desfigurado, marcado, diferente. Joana veio visitá-lo uma vez. ficou na porta sem conseguir olhá-lo diretamente. Murmurou desculpas sem sentido sobre família, sobre compromissos, sobre estar preparada. Uma semana depois, fugiu com um mascate que passava pela vila vendendo tecidos e perfumes.

 Levou com ela os últimos pedaços da inocência de Teodoro. Ele não a culpou. Como poderia? O espelho não mentia. Ele era agora o homem do rosto rasgado, o vaqueiro marcado, aquele de quem as crianças tinham medo e as mulheres desviavam o olhar. Vendeu o que restava na vila, comprou as terras abandonadas no meio do sertão, onde ninguém queria ir, e se exilou do mundo.

 Durante 5 anos, viveu sozinho. acordava antes do sol nascer, cuidava dos poucos animais que tinha, plantava o que conseguia, consertava cercas e telhados. À noite, sentava-se na varanda de sua casa e olhava o céu estrelado enquanto fumava um cigarro de palha.

 Não tinha vizinhos há menos de um dia de cavalgada, não recebia visitas, não esperava nada de ninguém. A solidão era sua companheira mais fiel. Ela estava no silêncio da casa vazia, no prato único sobre a mesa, na rede solitária onde dormia, nas conversas que tinha consigo mesmo enquanto trabalhava. Às vezes, passavam-se semanas sem que ouvisse voz humana além da própria.

 E aos poucos foi se acostumando, ou pensou que havia se acostumado. Mas o ser humano não foi feito para viver só. Por mais que tentasse negar, por mais que se convencesse de que não precisava de ninguém, havia noites em que o silêncio pesava como pedra no peito, noites em que acordava no meio da madrugada e procurava ao lado alguém que não estava lá.

 Noites em que preparava café demais, sem querer, esquecendo que era só ele. Noites em que o vento batia na porta e, por um segundo, ele esperava que fosse alguém chegando. Foi numa dessas noites que tomou a decisão. Estava sentado à mesa, mastigando carne seca com farinha, quando percebeu que não lembrava do som de uma risada.

 tinha esquecido como era ouvir alguém rir. Esse pensamento o atingiu com força inesperada e, pela primeira vez em anos, sentiu algo parecido com desespero. No dia seguinte, pegou papel e pena, escreveu e rasgou três vezes antes de conseguir colocar no papel o que queria dizer. As palavras saíam tortas, envergonhadas, mas eram honestas. Procuro uma esposa. Não prometo riqueza. Apenas teto e respeito.

Minha casa fica no sertão. Se alguém desejar ficar, que venha. Teodoro Campos, fazenda Três Irmãos. Dobrou o papel, guardou no bolso e, na próxima ida à vila, deixou-o no mural do correio. Pagou dois vintén para que permanecesse lá por um mês. O funcionário olhou para ele com curiosidade, mal disfarçada, mas não disse nada.

 Teodoro saiu sem olhar para trás. convencido de que havia cometido um erro. As primeiras semanas se passaram sem resposta. Ele ia vila a cada cinco dias, inventando desculpas para passar em frente ao correio, mas o papel continuava lá, amarelando ao sol, sendo ignorado pelas moças que passavam. Começou a se arrepender. Pensou em arrancar o anúncio, em voltar para sua solidão digna, mas algo o impedia.

Então, numa tarde de setembro, quando o calor estava tão forte que parecia derreter as pedras, o funcionário do correio o chamou. Tenho uma carta para o senhor, seu Teodoro. Era uma resposta. A primeira, a letra era caprichada de quem tinha alguma educação. Dizia que a moça Lucinda estava disposta a conhecê-lo, que chegaria na próxima semana.

 Teodoro voltou para casa num misto de ansiedade e terror. Limpou a casa de cima a baixo, esfregou o chão de barro até brilhar. Trocou a palha do telhado que estava furada, pintou a porta com tinta que tinha guardada, arrumou a rede do quarto, colocou flores do campo num jarro sobre a mesa. Quando terminou, olhou ao redor e viu que a casa continuava humilde, pequena, perdida no meio do nada. Mas estava limpa e era honesta.

 Lucinda chegou numa terça-feira, trazida por uma carroça alugada. Era uma mulher de meia idade, viúva, com dois filhos crescidos que haviam partido para a cidade. Teodoro a recebeu na estrada, tirando o chapéu respeitosamente. Ela desceu da carroça, limpou a poeira do vestido e olhou ao redor. Seu rosto mudou quando viu a extensão da catinga, a solidão do lugar, a casa simples, mas não disse nada. A senhora quer entrar? Preparei café”, ofereceu Teodoro.

 Ela concordou, mas seus olhos já estavam decididos. Entrou na casa, sentou-se educadamente, tomou o café em silêncio, respondeu às perguntas dele com monossílabus. Quando Teodoro virou o rosto para pegar o bule, ela viu as cicatrizes sob a luz que entrava pela janela. Seu corpo inteiro se enrijecou.

 Duas horas depois, estava de volta à carroça, inventando uma desculpa sobre um compromisso urgente na vila. Teodoro não tentou detê-la. Sabia reconhecer medo quando via. Despediu-se com cortesia e ficou olhando a nuvem de poeira vermelha que a carroça levantava ao se afastar, até que não fosse mais que um ponto no horizonte. A segunda foi Clemência, moça jovem de 20 anos que vinha fugindo de um pai violento.

 Chegou cheia de esperança, mas quando viu a distância da vila, a falta de vizinhos, o isolamento completo entrou em pânico. Disse que tinha medo de cobras, de escorpiões, de ficar doente longe de um médico. Teodoro tentou acalmá-la. explicou que conhecia a Terra, que sabia se proteger, mas ela já estava tremendo, abraçada à pequena mala.

 Partiu no mesmo dia. A terceira foi Marieta, mulher prática de 40 anos que parecia mais promissora. Inspeou a casa com olhar crítico, mas não desgostoso. Perguntou sobre a renda, sobre os animais, sobre as condições. Teodoro respondeu tudo com honestidade. Ela parecia satisfeita até o momento em que ele se virou completamente para pegar a água do pote. As cicatrizes apareceram sob a luz crua da tarde.

Marieta engasgou com o que ia dizer. Seus olhos se arregalaram. Não de medo, mas de algo pior. Repulsa. Desculpe, ela disse, levantando-se bruscamente. Não posso. Eu não. Não consigo. Nem esperou a carroça. Pegou sua trouxa e começou a caminhar pela estrada, preferindo enfrentar horas de sol escaldante a passar mais um minuto naquela casa. Teodoro a viu partir sem dizer palavra.

Algo dentro dele se fechou. definitivamente. Vieram outras depois. Algumas duravam uma hora, outras apenas minutos. Uma nem desceu da carroça. Outro olhou para a casa, depois para ele e simplesmente disse: “Não, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.” Teodoro parou de contar depois da décima.

 Cada rejeição era uma camada a mais de calosidade sobre um coração que já estava endurecido demais. A vila começou a falar. Diziam que ele estava amaldiçoado, que nenhuma mulher em sã consciência ficaria com um homem assim isolado, marcado, sozinho. Alguns riam dele quando passava pelas ruas fazendo piadas sobre o vaqueiro que ninguém quer. Outros sentiam pena, o que era pior.

Teodoro evitava ir à vila sempre que possível, mandando recados com viajantes quando precisava de algo. O anúncio ficou no mural até rasgar com a chuva rara que caiu em outubro. Teodoro não o renovou. Estava decidido a aceitar seu destino. Voltaria a ser o que era antes, um homem só, vivendo uma vida só, até que a Terra o reclamasse de volta.

 Mas o destino, como sempre, tinha outros planos. Era uma manhã de novembro quando tudo mudou. Teodoro estava cortando lenha de jurema no pequeno bosque atrás da casa. O machado subia e descia num ritmo constante, hipnótico, e o som ecoava na solidão da cainga. O suor escorria pelo rosto, ardendo nas cicatrizes, mas ele não parava.

O trabalho era sua única constância, a única coisa que fazia sentido. Foi quando ouviu o barulho distante de uma carroça. A princípio, pensou que fosse um viajante perdido, coisa comum naquelas bandas, mas a carroça parou em frente à sua casa. Teodoro franziu a testa, largou o machado e caminhou até lá, limpando o suor com o lenço do pescoço.

 O carroceiro era velho Jerônimo, que fazia o trajeto entre as vilas. Ele acenou para Teodoro com um sorriso desdentado. Seu Teodoro trouxe mais uma candidata para o senhor. Teodoro sentiu o estômago apertar. Não estou mais procurando. Ah, mas essa aqui insistiu muito disse Jerônimo descendo do banco. Veio de longe, coitada. Disse que leu seu anúncio há meses e demorou para conseguir vir. Do fundo da carroça, uma mulher desceu.

Teodoro ficou parado, preparado para mais uma decepção, mais uma fuga, mais uma confirmação de que estava destinado à solidão. Mas quando ela pisou na terra vermelha e se virou para ele, algo aconteceu. Ela era diferente das outras. Não trazia malas elegantes, nem roupas finas.

 vestia um vestido simples de chita desbotada, uma trouxa de pano amarrada às costas e um chapéu de palha surrado que mal protegia do sol. Era magra, com a pele queimada de quem conhecia trabalho pesado. Os olhos eram cor de mel, fundos, carregando histórias que ela não contava em voz alta. Mas o que mais impressionou Teodoro foi a expressão dela.

 Não havia medo, não havia repulsa, havia apenas uma calma estranha, uma determinação silenciosa. Ela olhou para a casa, para a catinga ao redor, para o céu sem nuvens, e depois olhou para ele diretamente nos olhos, sem desviar quando viu as cicatrizes. “O senhor é Teodoro Campos?”, perguntou. A voz era suave, mas firme.

 Sou, respondeu ele cauteloso. E a senhora é Amélia Tavares. Vim por causa do anúncio. Jerônimo pigarreou. Bem, vou deixá-los conversarem. Volto daqui a dois dias para ver se a moça fica ou se quer voltar. Ele piscou para Amélia com simpatia. Boa sorte, menina.

 A carroça partiu levantando poeira e eles ficaram ali parados um diante do outro sob o sol implacável do sertão. Teodoro não sabia o que dizer. Todas as outras já teriam inventado uma desculpa para ir embora. Mas Amélia continuava ali, firme como um pé de mandacaru. “A casa é longe de tudo”, disse ele finalmente, testando-a. Não tem vizinhos, não tem festas. Não tem nada além de trabalho e silêncio.

 Às vezes o silêncio é o que a gente mais precisa”, respondeu ela calmamente. Teodoro estudou seu rosto, procurando sinais de mentira ou piedade. Não encontrou nenhum dos dois, apenas cansaço e determinação. “Pode entrar”, disse ele ainda desconfiado. “Tem água fresca e posso preparar algo para comer.” Amélia pegou sua trouxa e seguiu-o até a casa. Quando entrou, não fez cara de desgosto, nem de surpresa.

Apenas olhou ao redor com atenção, como quem avalia um lugar para ficar. Viu a mesa simples, as panelas penduradas, a rede no canto, o fogão à lenha, tudo limpo, tudo arrumado, tudo esperando alguém que desse vida à aquilo. “É uma boa casa”, disse ela.

 E pela primeira vez, Teodoro ouviu sinceridade na voz de alguém ao falar de seu lar. Ele preparou café e tapioca enquanto ela se sentava à mesa. O silêncio entre eles não era desconfortável, era apenas presente. Teodoro servia os pratos quando percebeu que ela o observava. Não seu rosto, mas suas mãos, seus gestos, a maneira como se movia.

 “O senhor cuida bem deste lugar”, comentou Amélia. “É tudo que tenho, então é tudo que importa”. Comeram em silêncio. Lá fora, o sol continuava sua marcha inclus e a caatinga crepitava sob o calor. Mas dentro da casa havia sombra, havia calma, havia algo que Teodoro não sentia há anos. Companhia. Quando terminaram, Amélia levantou-se e começou a recolher os pratos.

 Teodoro tentou impedi-la, mas ela fez um gesto suave. Deixe-me ajudar. Não vim aqui para ser servida. E assim, pela primeira vez em 5 anos, havia duas pessoas naquela casa. Duas pessoas e uma possibilidade frágil, teimosa, que começava a brotar como semente na terra seca. Teodoro não sabia ainda, mas aquela mulher de olhos cor de mel trazia consigo mais do que determinação.

Trazia um segredo, um reconhecimento, uma dívida do passado que ela vinha a pagar. E o sertão, testemunha silenciosa de tantas histórias, preparava-se para presenciar mais uma, uma história de cicatrizes e recomeços, de solidão e encontro, de dois corações áridos, aprendendo a florescer novamente.

 Amélia ficou não apenas naquela tarde, mas também na noite que se seguiu e no dia seguinte e no outro. Cada manhã que passava, Teodoro acordava esperando encontrar a casa vazia, a trouxa dela desaparecida, uma nota de desculpas sobre a mesa, mas todas as vezes ela estava lá já acordada, preparando o café, varrendo o chão de barro, cuidando da horta que ele mantinha nos fundos. era desconcertante.

Todas as outras haviam fugido em questão de horas, apavoradas pela solidão, pelo calor ou pelas marcas em seu rosto. Mas Amélia permanecia tranquila, como se sempre tivesse pertencido à aquele lugar. Não fazia perguntas invasivas, não exigia explicações, não pedia promessas, apenas vivia dia após dia, dividindo o espaço com uma naturalidade que deixava Teodoro ao mesmo tempo aliviado e desconfiado. Ele não sabia lidar com a presença dela.

 Havia se acostumado tanto à solidão que ter alguém ali respirando o mesmo ar, compartilhando as refeições, ocupando os silêncios. Parecia irreal. Às vezes a observava de longe, enquanto ela estendia roupas no varal ou colhia palma para o gado, e se perguntava o que uma mulher como ela estava fazendo num lugar esquecido como aquele, o que a havia trazido até ali, porque não tinha fugido como todas as outras.

 Amélia não era bonita no sentido convencional. Seu rosto era marcado pelo sol, a pele escurecida e áspera de quem passou a vida ao relento. As mãos eram calejadas, os ombros ligeiramente curvados de carregar peso, mas havia algo nela que prendia o olhar, uma dignidade silenciosa, uma força interior que transparecia em cada gesto.

 Seus olhos, aqueles olhos cor de mel, coninham profundezas que Teodoro não conseguia decifrar. Na terceira noite, enquanto jantavam rapadura com queijo coalho, ela finalmente falou sobre si mesma: “Não muito, apenas fragmentos, como quem testa a água antes de mergulhar.” “Vim de longe”, disse, partindo um pedaço de rapadura de uma fazenda perto de Quichera Mobim. Meu pai era agregado de um coronel.

 Teodoro mastigava devagar, esperando que ela continuasse. Ele morreu quando eu tinha 15 anos, febre. Depois minha mãe também. Fiquei sozinha. E o que fez? Perguntou ele, quebrando seu silêncio habitual. Trabalhei onde pude, casas de família, roças, feira. Aprendi a me virar.

 Ela tomou um gole d’água, mas sempre tinha alguém querendo decidir meu destino. Patrões, parentes distantes, homens que achavam que mulher sozinha era terra sem dono. Teodoro entendeu o que ela não disse. Conhecia o sertão e suas regras cruéis para com mulheres sem proteção. Foi por isso que respondeu ao anúncio? Perguntou sua voz mais suave que o normal. Amélia o encarou diretamente.

Respondi porque vi honestidade naquelas palavras. Não prometo riqueza, apenas teto e respeito. Ninguém nunca me ofereceu respeito antes. Sempre foi posse, obrigação, favor, mas nunca respeito. Algo se moveu dentro do peito de Teodoro. Pela primeira vez em anos, sentiu que alguém o entendia, não por piedade, mas por reconhecimento. Ambos eram marcados pela vida.

 Ele no rosto, ela na alma. Ambos tinham sido rejeitados, julgados, deixados de lado. E ali estavam dois náufragos dividindo a mesma tábua em meio ao oceano de solidão do sertão. “Você não tem medo de ficar aqui?”, perguntou ele. “Longe de tudo, sem ninguém por perto?” “Medo do quê?”, ela inclinou a cabeça genuinamente curiosa. “De silêncio, de trabalho, de paz.” fez uma pausa.

 Já vivi com medo, seu Teodoro. Medo de apanhar, medo de passar fome, medo de ser forçada a algo que não queria. Aqui não sinto nenhum desses medos. E as cicatrizes? A pergunta saiu antes que ele pudesse contê-la. Você não tem medo delas? Amélia baixou o olhar para o prato, pensativa.

 Quando levantou novamente os olhos, havia uma ternura neles que Teodoro não esperava. “Cicatrizes só assustam quem nunca sofreu”, disse ela suavemente. “Quem já sangrou reconhece as marcas nos outros e sabe que por trás de cada uma há uma história de sobrevivência.” O silêncio que se seguiu foi denso, carregado de coisas não ditas.

 Teodoro sentiu um nó na garganta, uma emoção que não sabia nomear. Pela primeira vez desde o acidente, alguém olhava para ele e via além das cicatrizes. Via o homem que havia embaixo delas. Naquela noite, depois que Amélia se recolheu para o quarto que ele havia cedido a ela, Teodoro ficou na varanda fumando.

 O céu estava limpo, salpicado de estrelas que brilhavam com intensidade absurda naquela escuridão sem luz artificial. A catinga noturna era um concerto de grilos e sapos, pontuado ocasionalmente pelo grito distante de alguma ave. O ar, embora ainda morno, trazia um alívio bem-vindo depois do calor escaldante do dia. Ele pensou em Joana, sua antiga noiva. Tentou lembrar seu rosto, o som de sua voz, mas a memória estava desbotada como fotografia velha. Percebeu com surpresa que não sentia mais dor ao pensar nela.

 Apenas uma vaga melancolia, como se aquilo tivesse acontecido com outra pessoa em outra vida. Amélia era tão diferente de Joana, onde uma havia sido frágil e assustada, a outra era forte e serena, onde uma fugira ao menor sinal de adversidade, a outra permanecia firme como pedra.

 Teodoro não sabia ainda se podia confiar naquela permanência, se ela realmente ficaria ou se eventualmente também partiria. Mas pela primeira vez em anos, havia uma pequena chama de esperança queimando em seu peito, e ele tinha medo de que o vento a apagasse. Os dias começaram a seguir um ritmo próprio.

 Teodoro acordava antes do amanhecer e ia verificar o gado, consertar cercas, cuidar da terra. Amélia ficava na casa, mas não como uma prisioneira ociosa. Ela trabalhava incansavelmente, transformando aos poucos aquele espaço que havia sido apenas funcional em algo que começava a parecer um lar. lavou as cortinas que estavam amareladas pelo tempo e as estendeu ao sol até ficarem brancas novamente.

 Varriu cada canto, espantando aranhas e escorpiões que haviam se instalado nos lugares esquecidos. Reganizou a despensa, jogando fora mantimentos velhos e arrumando os que restavam com método. Plantou sementes de coentro e cebolinha num canteiro ao lado da casa.

 consertou um banco quebrado que Teodoro tinha abandonado no canto do quintal, mas o mais impressionante era a comida. Teodoro estava acostumado a refeições básicas, funcionais: feijão, farinha, carne seca, café. Amélia pegava os mesmos ingredientes e criava magia. Fazia pirão saboroso, temperava a carne com ervas que colhia na catinga, assava macaira nas brasas, preparava cuscus que desmanchava na boca.

 Cada refeição se tornava um evento, um momento de prazer, que Teodoro havia esquecido que existia. “Onde aprendeu a cozinhar assim?”, perguntou ele uma noite, saboreando um ensopado de galinha que ela havia preparado. “Com minha mãe”, respondeu Amélia. mexendo a panela no fogão. Ela dizia que comida feita com cuidado alimenta mais que o corpo, alimenta também a alma. Teodoro mastigou devagar, deixando as palavras penetrarem.

Havia verdade naquilo. Pela primeira vez em anos, não estava apenas se alimentando para sobreviver. estava saboreando, apreciando, sentindo prazer em algo tão simples quanto uma refeição. “Sua mãe era sábia”, disse ele. Amélia sorriu, um sorriso pequeno, mas genuíno. Era, faz falta todo dia. Uma semana depois de sua chegada, Amélia pediu para acompanhá-lo ao trabalho.

 Teodoro hesitou, achando que ela não aguentaria o sol forte e o labor pesado, mas ela insistiu. Preparou água suficiente, colocou um chapéu de palha e o seguiu até o curral, onde ele estava consertando uma cerca quebrada. O trabalho era árduo, a madeira da jurema era dura, cheia de espinhos, difícil de manejar. Teodoro martelava e serrava, o suor escorrendo pelo rosto, as mãos ganhando novas calosidades sobre as antigas.

 Amélia não ficou apenas observando, pegou pedaços de arame e começou a amarrá-los nas estacas, fazendo nós firmes, que seguravam o peso da cerca. “Não precisa fazer isso”, disse Teodoro. “É trabalho pesado. Tenho duas mãos e sei usá-las”, respondeu ela sem parar. Não vim aqui para ser enfeite. Ele a observou trabalhar.

 Os movimentos dela eram eficientes, práticos, de quem estava acostumada a labor duro. Não reclamou do calor, dos espinhos que ocasionalmente furavam suas mãos, da terra vermelha que grudava na pele com o suor. Apenas trabalhou lado a lado com ele, até que a cerca estivesse consertada. Quando terminaram, o sol estava a pino.

 Sentaram-se à sombra de um juazeiro compartilhando água da mesma cabaça. Teodoro olhou para ela, para o rosto corado pelo esforço, para as mãos sujas de terra, e sentiu algo estranho no peito. Não era desejo exatamente, embora houvesse um pouco disso. Era mais profundo. admiração, respeito, o início de algo que poderia se tornar mais se ele deixasse.

 “Você é forte”, disse ele, as palavras saindo desajeitadas. Amélia limpou o suor da testa, deixando uma mancha de terra. “A vida me ensinou a ser, não tive escolha.” Eu também não, admitiu Teodoro, mas acho que esqueci como era ter alguém ao lado. Ela o olhou, então, realmente o olhou e havia uma intensidade naquele olhar que o fez desviar os olhos. “Não esqueceu”, disse ela suavemente.

 Só estava esperando a pessoa certa para lembrar. O momento foi quebrado pelo berro de uma vaca ao longe. Teodoro levantou-se, oferecendo a mão para ajudá-la. Quando suas mãos se tocaram ásperas e calejadas, algo passou entre eles. Uma centelha, um reconhecimento, uma promessa ainda não formulada em palavras.

 À noite, depois do jantar, Teodoro pegou a viola, que estava pendurada na parede, empoeirada pelo desuso. Fazia anos que não tocava, desde antes do acidente, desde os tempos em que ainda tinha esperança e alegria. Mas naquela noite, com Amélia sentada do outro lado da mesa, remendando uma camisa dele, sentiu vontade de tentar.

 Os primeiros acordes saíram desafinados, hesitantes. Seus dedos estavam enferrujados, esquecidos da posição correta. Mas aos poucos a memória muscular voltou e uma melodia simples começou a fluir. Uma cantiga antiga que sua mãe cantava quando ele era criança, sobre um vaqueiro e uma moça da cidade, sobre amor improvável e destinos entrelaçados.

 Amélia parou de costurar e levantou os olhos. Havia surpresa neles, mas também deleite. Quando Teodoro começou a cantar, a voz rouca e desacostumada, ela fechou os olhos e sorriu. Era um sorriso de pura paz, de alguém que encontrou exatamente onde deveria estar. Quando a música terminou, o silêncio que se seguiu era diferente dos silêncios anteriores.

 Não era vazio, mas preenchido, completo, como se finalmente todas as peças estivessem no lugar certo. “Fazia tempo que não ouvia música”, disse Amélia, sua voz quase um sussurro. “Esqueci como era bom. Eu também”, admitiu o Teodoro, passando a mão pelas cordas da viola. Achei que nunca mais conseguiria. É porque não conseguiria? Ele tocou as cicatrizes no rosto instintivamente porque achei que havia perdido tudo, incluindo a música. Amélia levantou-se e caminhou até ele.

 Por um momento, Teodoro pensou que ela fosse tocar seu rosto, tocar as cicatrizes, mas ela simplesmente colocou a mão sobre a dele, sobre a viola. Você não perdeu”, disse ela a voz firme. “Apenas guardou em algum lugar fundo, mas está tudo ainda aqui. A música, a alegria, a capacidade de sentir, tudo.” Teodoro olhou para a mão dela sobre a sua.

 Era menor, mais delicada, apesar das calosidades, mas havia força nela. A mesma força que ele via em tudo que ela fazia, a força de quem sobreviveu e escolheu, apesar de tudo, continuar vivendo plenamente. “Como você sabe?”, perguntou ele, a voz rouca. “Porque eu também guardei tudo muito fundo”, respondeu ela.

 “E você está me ajudando a encontrar de novo.” Naquela noite, ambos dormiram melhor do que haviam dormido em anos. Teodoro sonhou com chuva caindo no sertão, com a terra rachada bebendo água, com plantas brotando onde antes só havia secura. Acordou com o som de Amélia cantarolando na cozinha, preparando o café da manhã, e pela primeira vez não pensou no quanto estava sozinho, porque não estava mais, mas a paz que estava se construindo entre eles ainda seria testada.

 O sertão tinha suas próprias regras e o mundo lá fora não esquecia facilmente aqueles que escolhiam viver à margem. Em breve, o passado de ambos viria cobrar sua conta e eles teriam que decidir se o que estava nascendo entre eles era forte o suficiente para resistir às tempestades que se aproximavam.

 Por enquanto, porém, havia apenas o presente, os dias quentes e as noites estreladas. O trabalho compartilhado e as refeições em silêncio confortável, os olhares que duravam um segundo a mais do que deviam, as mãos que ocasionalmente se tocavam ao passar um prato, uma ferramenta, uma palavra. Teodoro começou a esperar pelos momentos em que voltava do trabalho e havia na varanda.

 Amélia começou a preparar refeições com mais cuidado, escolhendo os melhores pedaços, temperando com atenção extra, pequenas coisas, gestos sutis que diziam o que as palavras ainda não ousavam expressar. Uma tarde ele trouxe flores da catinga. Não eram bonitas no sentido tradicional, eram pequenas e resistentes, amarelas e brancas, espinhosas como tudo mais naquela terra, mas eram flores. Amélia as recebeu como se fossem orquídeas, colocando-as num copo d’água no centro da mesa.

 “Ninguém nunca me deu flores antes”, disse ela, tocando delicadamente as pétalas. São apenas flores do mato”, disse Teodoro constrangido. “Nada especial. São especiais porque você pensou em mim”, respondeu ela, e o olhar que lhe lançou fez o coração dele acelerar de um jeito que não acelerava há anos.

 À noite, sentaram-se na varanda como já estava se tornando costume. O céu estava particularmente estrelado. Havia láctea, uma mancha leitosa de extremo a extremo. Amélia apontou para uma estrela cadente que riscou o céu. “Faça um pedido”, disse ela. “Não acredito nisso”, respondeu Teodoro, mas estava sorrindo. “Não custa tentar”.

 Ele fechou os olhos por um momento e quando os abriu encontrou ela já olhando para ele. Não para as cicatrizes, não para o homem marcado, mas para ele, para Teodoro, para o ser humano debaixo de todas as camadas de proteção e dor. “Já fiz meu pedido”, disse ela suavemente. “E o que pediu? Que o que está começando aqui seja real, que não seja apenas dois solitários se agarrando um ao outro, mas algo verdadeiro.

 Teodoro o engoliu em seco. Sentia que estava à beira de algo imenso, assustador, maravilhoso. Poderia recuar, proteger-se, manter as paredes erguidas, ou poderia dar um passo à frente na direção dessa mulher que havia entrado em sua vida e começado a transformá-la sem fazer alarde apenas. sendo quem era.

 “Eu também quero que seja real”, admitiu, as palavras saindo com dificuldade, mas com honestidade. “Mas tenho medo de quê?” “De que você descubra que não há nada além das cicatrizes, que eu esteja vazio por dentro? Que você eventualmente perceba e vá embora como todos os outros?” Amélia se levantou e se aproximou dele. Ficou de pé à sua frente, enquadrando o rosto dele com as mãos e então, com infinita ternura, tocou as cicatrizes.

 Passou os dedos pelas linhas irregulares, sentindo a textura da pele marcada, sem medo, sem repulsa, apenas com aceitação. Essas cicatrizes contam uma história”, disse ela, a voz embargada, “de um homem que enfrentou dor e sobreviveu, de alguém que não desistiu mesmo quando seria mais fácil, de força, não de fraqueza.” Teodoro fechou os olhos, lágrimas ameaçando cair.

 Fazia tanto tempo que alguém o tocava com ternura. Tanto tempo que sentia calor humano que não fosse da própria tempo sozinho. “Você não está vazio”, sussurrou Amélia, ainda tocando seu rosto. “Está apenas machucado, e machucados podem sarar se deixarmos”. Quando ela retirou as mãos, Teodoro sentiu a ausência como dor física, abriu os olhos e a encontrou, olhando para ele, com uma expressão que ele não sabia decifrar.

 Havia ternura ali, mas também desejo. Havia esperança, mas também medo. Havia tudo que ele próprio sentia, refletido naqueles olhos cor de mel. Amélia, começou ele, sem saber como continuar. Não precisa dizer agora interrompeu ela gentilmente. Temos tempo. Pela primeira vez em muito tempo. Ambos temos tempo. E então ela voltou para dentro, deixando-o sozinho com a noite, as estrelas e um coração que, lentamente, dolorosamente, maravilhosamente, começava a despertar de um longo sono.

Tinga testemunhava em silêncio, como havia testemunhado inúmeras histórias antes, de amores impossíveis que floresceram contra todas as probabilidades de vidas áridas que encontraram água onde não deveria haver, de sementes que germinaram em terra seca, teimosas, insistentes, vivas, e no coração daquela imensidão, numa casa humilde perdida entre Mandacaruz e Jurema, Duas almas marcadas pela vida começavam a escrever sua própria história lentamente, com cuidado, mas inexoravelmente. As semanas se transformaram em meses e a

rotina entre Teodoro e Amélia ganhou contornos de intimidade. Não a intimidade dos corpos, que ainda se mantinham respeitosamente distantes, mas a intimidade das almas que aprendem a conviver, a se conhecer nos pequenos detalhes que só o tempo revela. Ele descobriu que ela cantarolava baixinho quando estava concentrada.

 Ela percebeu que ele sorria apenas com o canto dos olhos quando algo o divertia. Pequenas revelações que teciam entre eles uma trama invisível, mas cada vez mais resistente. A fazenda também começou a mudar. O que antes era apenas funcional, um lugar para sobreviver, começava a aparecer um lar. Amélia plantou flores ao redor da casa, pequenas e resistentes como ela própria.

Teodoro consertou a cerca da frente e pintou os portões de um azul desbotado que havia encontrado guardado. Juntos reformaram o galinheiro e conseguiram algumas galinhas na vila. E de repente havia ovos frescos pela manhã e o som reconfortante de cacarejos no quintal. Mas por baixo dessa superfície de paz havia correntes profundas ainda não exploradas.

 Amélia carregava segredos que não havia revelado e Teodoro, embora começasse a se abrir, ainda guardava dores que não sabia expressar. A verdadeira intimidade exigiria mais do que trabalho compartilhado e refeições silenciosas. exigiria vulnerabilidade completa e ambos ainda temiam o que isso poderia revelar.

 Foi numa tarde de dezembro, quando o calor estava particularmente brutal, que a primeira fissura apareceu. Teodoro havia ido até o açud distante para verificar o nível da água, preocupado com a seca que se aproximava. Voltou mais cedo que o esperado e encontrou a mélha no quintal dos fundos, longe da casa. de joelhos na terra. A princípio, pensou que ela estivesse trabalhando no jardim, mas ao se aproximar percebeu que ela estava imóvel, as mãos cobrindo o rosto, os ombros tremendo. Estava chorando.

 Em todos os meses que haviam passado juntos, ele nunca a tinha visto chorar. Amélia, chamou hesitante. Ela se sobressaltou, limpando rapidamente o rosto com as costas das mãos, tentando esconder as lágrimas. “Desculpe, não sabia que você tinha voltado.” “O que aconteceu?”, perguntou ele, agachando-se ao lado dela.

 “Está machucada?” “Não, não é nada”, disse ela, mas sua voz estava embargada, traindo a mentira. Teodoro não insistiu. Havia aprendido que forçar confidências apenas as afugentava, mas ficou ali sentado no chão ao lado dela em silêncio solidário esperando. Depois de longos minutos, Amélia finalmente falou a voz baixa: “É aniversário da minha mãe hoje. Ela teria 52 anos. Sinto muito.

 Faz 10 anos que ela se foi, mas em alguns dias a saudade vem com tudo, como se fosse ontem. Ela olhou para as próprias mãos sujas de terra. Eu estava plantando alecm. Era a erva favorita dela. Dizia que trazia proteção. Teodoro observou o pequeno canteiro onde ela havia plantado as mudas. Ela ficaria orgulhosa de você, de tudo que conquistou sozinha. Amélia soltou um riso amargo.

 Não sei se ficaria. Acho que ela queria mais para mim do que isso. Uma vida melhor, mais segura. Isso aqui não é bom o suficiente. Ela se virou para ele, os olhos ainda úmidos. Não quis dizer assim: “Este lugar, você é mais do que eu esperava encontrar. É só que às vezes me pergunto se ela entenderia minhas escolhas, se aprovaria.

 “Suas escolhas te trouxeram aqui”, disse Teodoro suavemente. “E eu agradeço por isso todo dia, mesmo que não diga”. Os olhos de Amélia se encheram de lágrimas novamente, mas dessa vez eram diferentes, não de dor, mas de algo mais complexo. Gratidão misturada com medo, esperança temperada por incerteza. “Tem algo que preciso te contar”, disse ela de repente, como se as palavras tivessem sido arrancadas de um lugar profundo.

Algo que você merece saber. O coração de Teodoro acelerou. Aqui estava, pensou, a revelação que ele meio que esperava, a razão real pela qual ela havia ficado, o segredo que ela guardava, preparou-se para ouvir que ela tinha um passado sombrio, que estava fugindo de alguém que eventualmente teria que partir.

 “Pode me dizer o que for?”, respondeu, mantendo a voz firme, apesar da tensão. Amélia respirou fundo, juntando coragem. Eu não vim aqui por acaso. Quero dizer, vi seu anúncio e respondi, mas não foi só por isso. Eu eu te reconheci desde o momento em que cheguei. Teodoro franziu a testa confuso. Reconheceu.

 Mas nunca nos encontramos antes de você chegar. Sim, encontramos. Você só não se lembra. Ela limpou as lágrimas do rosto. Foi há 12 anos. Eu tinha 16. Houve uma tempestade de areia terrível, você lembra? Uma das piores que já atingiu o sertão. Teodoro lembrava vagamente. Havia sido anos antes do acidente, quando ele ainda era jovem e trabalhava como vaqueiro para um fazendeiro rico de outra região.

 Eu estava viajando com meus pais, continuou Amélia. Vínhamos de Canindé para Quicheramobim. A tempestade nos pegou no caminho. Foi tão forte, tão repentina. A areia entrou nos nossos olhos, na boca, em tudo. Os cavalos entraram em pânico. Eu caí da carroça. Sua voz tremeu ao relembrar. Meus pais não perceberam imediatamente. Quando deram por mim, já estava longe, arrastada pelo vento, sem conseguir ver nada. Achei que ia morrer. Estava aterrorizada, cega pela areia, sem ar.

Ela fez uma pausa e Teodoro começou a se lembrar. Havia um fragmento de memória nebuloso, de uma tempestade de gritos perdidos no vento. Foi quando você apareceu disse Amélia, olhando-o diretamente nos olhos. Um vaqueiro montado, coberto com um pano no rosto. Você me encontrou, me pegou. me colocou no seu cavalo, galopou contra o vento até encontrar uma grota onde pudemos nos abrigar.

 As lembranças começaram a se formar mais claramente na mente de Teodoro. A tempestade, os gritos, uma menina jovem, pequena, aterrorizada. Ele a tinha encontrado quase enterrada pela areia, puxado para cima, levado para a segurança. “Você ficou comigo até a tempestade passar”, continuou ela, a voz suave. Falou comigo, me acalmou, disse que tudo ia ficar bem.

 Quando clareou, você me levou de volta para a estrada, encontrou meus pais. Eles estavam desesperados, achando que eu tinha morrido. “Eu me lembro”, disse Teodoro lentamente, as peças se encaixando. “Você era só uma menina, estava apavorada. Você salvou minha vida”, disse Amélia simplesmente. “E nunca mais te esqueci.

 Vi seu rosto apenas por alguns momentos quando você tirou o pano, mas gravei cada detalhe, seus olhos principalmente. E quando vi seu anúncio no jornal, quando li seu nome, soube que tinha que vir. Teodoro ficou atordoado. Você veio até aqui por causa daquilo, mas foi há tanto tempo e eu agora eu sou diferente. O acidente mudou tudo. Mudou seu rosto corrigiu Amélia. Não mudou seus olhos. Não mudou quem você é por dentro.

 Quando cheguei aqui e te vi de perto pela primeira vez, tive certeza absoluta. Eram os mesmos olhos que me olharam com bondade quando eu estava aterrorizada. O mesmo homem que não hesitou em arriscar a própria vida para salvar uma desconhecida. Lágrimas começaram a descer pelo rosto dela novamente.

 Durante todos esses anos, sempre que a vida ficava difícil, eu me lembrava de você, do homem que apareceu no meio da tempestade quando eu mais precisava. Você se tornou uma espécie de de símbolo para mim, de que havia bondade no mundo, de que valia a pena continuar. Teodoro não sabia o que dizer.

 sentia-se exposto, vulnerável de uma forma que nunca havia experimentado. Ela não tinha vindo por piedade, nem por desespero. Tinha vindo por gratidão, por reconhecimento, por uma dívida que sentia que devia. “Você não me deve nada”, conseguiu dizer finalmente. “Qualquer pessoa teria feito o mesmo.” “Mas não foi qualquer pessoa”, insistiu Amélia. “Foi você.

 E quando vi que você estava procurando alguém que estava sozinho, soube que era minha vez de aparecer na tempestade, minha vez de estar lá quando você precisasse. Eu não precisava ser salvo”, disse Teodoro, mas as palavras soaram vazias até para ele mesmo. Precisava sim, disse ela gentilmente. Só não sabia, assim como eu não sabia naquele dia na tempestade.

 Mas ambos estávamos nos perdendo, cada um à sua maneira. E às vezes, Teodoro, salvar alguém é apenas estar presente. É apenas não desistir quando seria mais fácil ir embora. O silêncio que se seguiu foi profundo. Teodoro processava a revelação, todas suas implicações. Parte dele queria ficar bravo, sentir que ela havia ficado por obrigação, por dívida.

 Mas olhando para ela, para a sinceridade crua em seus olhos, sabia que não era isso. A dívida talvez a tivesse trazido, mas não era o que a mantinha ali. Tem medo de que eu tenha ficado só por gratidão? Perguntou Amélia, lendo seus pensamentos. Tenho, admitiu ele. Então deixe-me ser clara. Ela pegou as mãos dele entre as suas, segurando com firmeza.

 A gratidão me trouxe aqui, mas não é gratidão o que sinto agora. Eh, é algo muito maior, muito mais assustador, algo que cresce cada dia que passo ao seu lado. O coração de Teodoro batia tão forte que ele tinha certeza de que ela podia ouvir. “Amélia, não precisa dizer nada agora”, interrompeu ela.

 “Só precisava que você soubesse a verdade, toda ela. Porque se vamos construir algo real aqui, tem que ser sobre honestidade, não sobre segredos. Ela tinha razão, ele sabia. E se havia honestidade, ele também precisava ser completamente honesto. Quando você chegou, começou ele lentamente. Achei que era mais uma que ia fugir. Estava preparado para isso. Tinha aceitado que ia viver sozinho para sempre.

 E agora? Agora tenho medo de acordar e descobrir que você se foi. Tenho medo de me acostumar com sua presença e depois ter que voltar ao silêncio. Tenho medo. Sua voz falhou. Tenho medo de sentir de novo, Amélia. Porque da última vez que senti algo por alguém, perdi tudo. Joana, disse Amélia suavemente. Teodoro olhou para ela surpreso. Como sabe sobre ela? A vila fala e eu perguntei.

 Ela apertou as mãos dele. Ela te abandonou quando você mais precisava e isso te marcou mais fundo que qualquer espinho. Era verdade. As cicatrizes no rosto doíam às vezes, especialmente quando o tempo mudava, mas as cicatrizes no coração doíam sempre. Ela tinha medo”, disse Teodoro, tentando ser justo mesmo depois de tantos anos.

 Medo do futuro, do que as pessoas iam dizer, de ficar presa a um homem desfigurado no meio do nada. “Ela covarde.” Corrigiu Amélia com firmeza. “O amor verdadeiro não foge quando fica difícil, fica e luta. E é isso que você está fazendo, ficando e lutando?” Amélia sorriu através das lágrimas. Ainda não percebeu? Eu já lutei. Viajei dias para chegar aqui. Enfrentei o julgamento da vila.

 Fiquei quando todas as outras fugiram. Não porque sou melhor que elas, mas porque para mim você vale a luta. Teodoro sentiu algo se quebrar dentro dele, uma parede que ele havia construído tijolo por tijolo durante anos. E por trás dela, sentimentos que ele havia trancado com cuidado começaram a jorrar.

 Puxou a Mélia para si, abraçando-a com força. Ela se deixou envolver, escondendo o rosto no pescoço dele, e ambos ficaram assim, ajoelhados na terra vermelha do quintal, segurando um ao outro, como se fossem a última coisa sólida num mundo que desmoronava. Eu também sinto”, sussurrou Teodoro em seu ouvido.

 “Também sinto algo crescendo e também estou apavorado.” “Então vamos ter medo juntos”, respondeu ela, a voz abafada contra seu ombro. “É menos assustador assim.” Ficaram abraçados até o sol começar a descer, pintando o céu de laranjas e rosas. Quando finalmente se separaram, ambos tinham olhos vermelhos, mas sorrisos tímidos.

 Algo havia mudado irrevocavelmente entre eles. A verdade havia sido dita e eles ainda estavam ali juntos inteiros. Mas a paz duraria pouco, porque enquanto eles plantavam raízes naquela terra árida, forças externas já conspiravam para arrancá-las. Três dias depois, Teodoro precisou ir à vila para comprar mantimentos. Normalmente ia sozinho, mas dessa vez Amélia insistiu em acompanhá-lo.

 Queria tecido para fazer cortinas novas e algumas sementes que não conseguiam na fazenda. Ele hesitou, sabendo como a vila podia ser cruel, mas ela foi irredutível. A viagem levou quase um dia. Saíram antes do amanhecer, quando o ar ainda estava fresco e o céu tingido de púrpura.

 Amélia ia sentada ao lado dele na carroça, um chapéu de palha protegendo-a do sol, que logo estaria implacável. Conversaram durante o caminho, ela contando histórias da infância, ele apontando marcos da paisagem. Era fácil, confortável, natural. Mas quando chegaram à vila, a atmosfera mudou. As pessoas olhavam, coxixavam.

 Algumas mulheres na praça pararam de conversar quando os viram passar, seus olhos seguindo cada movimento. Teodoro conhecia aqueles olhares. Eram os mesmos que recebia desde o acidente. Mistura de curiosidade mórbida e repulsa disfarçada. Não ligue para eles”, murmurou Amélia, percebendo a tensão em seus ombros.

 “Estou acostumado”, respondeu ele, mas sua mandíbula estava tensa. Pararam em frente à venda. Teodoro desceu e ajudou Amélia, sentindo os olhares queimando suas costas. Dentro da loja, o dono, seu Joaquim, os cumprimentou com educação forçada. “Seu Teodoro, e a senhora é Amélia.

” disse ela, estendendo a mão, que seu Joaquim apertou brevemente antes de soltá-la como se queimasse. “Ah, sim, a moça que ficou”, disse ele. “E havia algo em seu tom que não era exatamente aprovação. A vila toda está falando.” “Falando o quê?”, perguntou Teodoro, uma irritação crescente em sua voz. Ora, que o senhor finalmente encontrou alguém disposta a Ele parou, escolhendo as palavras com cuidado, a ficar nas terras dele.

 Amélia interveio antes que Teodoro pudesse responder: “Preciso de 5 m de chita, senor Joaquim, a azul, se tiver, e sementes de quiabo e maxixe.” Enquanto seu Joaquim separava os pedidos, Teodoro percebeu um grupo de homens reunidos no canto da venda. bebendo cachaça, apesar da hora matinal. Entre eles estava Damião, irmão mais novo de Teodoro, que ele não via há quase do anos.

 Os irmãos nunca foram próximos. Damião tinha escolhido a vida na vila, trabalhando como ferreiro, casando com a filha do juiz, integrando-se na sociedade local. Quando Teodoro sofreu o acidente e se exilou, Damião não fez esforço para visitá-lo ou ajudá-lo.

 Havia uma mágoa antiga entre eles, anterior às cicatrizes, enraizada em ciúmes de infância e escolhas de vida divergentes. Teodoro disse Damião, levantando-se cambaliante. Estava claramente embriagado. Ouvi dizer que você arranjou companhia, Damião”, respondeu Teodoro friamente. Não sabia que começava a beber tão cedo. “É dia de folga”, respondeu o irmão com um sorriso torto.

 “E comemoração? Não, meu irmão finalmente encontrou uma mulher disposta a suportar aquela cara feia. O silêncio caiu sobre a venda. Todos os presentes pararam o que estavam fazendo, sentindo a tensão no ar. Amélia se aproximou de Teodoro, colocando uma mão suave em seu braço. “Vamos embora”, sussurrou. Mas Damião não tinha terminado.

 Aproximou-se oscilante, olhando Amélia de cima a baixo, com desrespeito óbvio. “E você, moça, o que ganhou nesse negócio? Deve ser desesperada para aceitar viver no fim do mundo com um homem que assusta até o gado. “Cuidado com o que diz”, avisou Teodoro, sua voz baixa e perigosa. “Ou o quê? Vai me bater, me marcar como você mesmo está marcado?” Damião riu, mas era uma risada amarga, cheia de veneno velho.

 Sempre foi o favorito, não foi? O filho forte, o vaqueiro corajoso. E onde isso te levou? a viver como bicho no mato, sozinho, rejeitado. “Damião já chega”, interveio o seu Joaquim, mas sem muita convicção. Teodoro deu um passo à frente, os punhos cerrados, mas antes que pudesse fazer qualquer coisa, Amélia se colocou entre eles.

 Olhou Damião diretamente nos olhos, sem medo, sua voz clara e firme. Seu irmão tem mais coragem, decência e honra no dedo mindinho do que o Senhor tem no corpo inteiro”, disse ela. Ele trabalha de sol a sol, cuida do que é seu, sem pedir ajuda de ninguém, e ainda tem coração generoso o bastante para abrir sua casa para uma estranha.

 Ela deu um passo mais perto de Damião, que recuou instintivamente. E eu não estou desesperada. Estou exatamente onde escolhi estar, com um homem que vale 10 de você, com cicatrizes e tudo. Porque essas marcas contam uma história de coragem, de alguém que arriscou a própria vida tentando salvar o que era seu.

 O que suas marcas contam, senhor Damião, que passa os dias bebendo e destilando amargura? O silêncio na venda era absoluto. Ninguém ousava respirar alto. Damião olhava para Amélia com a boca aberta, claramente não esperando ser confrontado, muito menos por uma mulher. “Seu Joaquim”, disse Amélia, virando-se calmamente.

 “Terminaram de separar nossos pedidos?” Sim, senhora! Gaguejou o vendeiro. Ótimo, Teodoro. Pode carregar enquanto eu pago. Ainda atordoado pelo que havia presenciado, Teodoro pegou os pacotes e saiu. Amélia pagou, agradeceu educadamente e o seguiu com a cabeça erguida. Quando passaram pela porta, ouviram Damião murmurar algo, mas nenhum dos dois se virou.

 Só quando estavam na carroça, já saindo da vila, Teodoro finalmente falou: “Você não precisava fazer aquilo.” “Precisava sim”, respondeu Amélia. Alguém tinha que dizer a verdade para aquele homem. Ele é meu irmão. É seu irmão de sangue, mas sangue não significa nada quando não há respeito. Ela olhou para ele. E quanto ao resto da vila, que falem, palavras não mudam quem somos. Teodoro a olhou como se a visse pela primeira vez.

 Essa mulher que havia chegado tão quieta, tão discreta, tinha dentro de si uma força que ele mal começava a compreender. Não era apenas gratidão que sentia por ela, percebeu, era admiração, respeito e algo mais profundo, mais assustador, que ele ainda não estava pronto para nomear. Obrigado”, disse simplesmente. Amélia sorriu. “É para isso que servem as parcerias. Um protege o outro.

” O caminho de volta foi tranquilo, mas ambos sabiam que algo havia mudado. A vila sabia agora, oficialmente da existência de Amélia, e o sertão, como sempre, tinha maneiras de transformar fofocas em tempestades. A verdadeira provação do que eles estavam construindo ainda estava por vir.

 Mas por enquanto, enquanto a carroça balançava pela estrada empoeirada e o sol começava sua descida, eles estavam juntos. E isso descobriram era o suficiente por enquanto. Os dias que se seguiram à visita na vila foram tensos. Teodoro percebia que algo havia mudado no ar, uma eletricidade invisível que precedia tempestades.

 Não as tempestades de areia que varriam o sertão, mas as tempestades humanas feitas de julgamento e malícia. A fazenda continuava seu ritmo tranquilo na superfície, mas ambos sentiam que a paz era frágil, temporária. Amélia não mencionou o confronto com Damião, mas Teodoro a pegava às vezes, olhando para na estrada, como se esperasse ver alguém chegando.

 Ela trabalhava com ainda mais afinco, como se quisesse provar algo para si mesma ou pro mundo. Ele não sabia. Janeiro chegou trazendo o calor mais intenso que Teodoro se lembrava em anos. O sol nascia como uma bola de fogo no horizonte e passava o dia queimando tudo com fúria implacável. A terra rachava em padrões intrincados, sede escrita na própria paisagem.

 O açude baixava perigosamente e o gado magro procurava sombra debaixo das poucas árvores que ainda resistiam. A seca era esperada naquela época do ano, mas essa parecia especialmente cruel. Teodoro acordava antes do amanhecer e passava horas carregando água do poço para os animais, para a horta, para a casa. Amélia ajudava carregando baldes que pesavam quase tanto quanto ela, nunca reclamando, apenas fazendo o que precisava ser feito.

 Foi num desses dias escaldantes, quando o termômetro marcava além do suportável que Amélia começou a passar mal. A princípio, foram apenas tonturas leves que ela tentou esconder, mas Teodoro a viu cambalear enquanto estendia roupas no varal e correu para segurá-la antes que caísse. “Estou bem”, insistiu ela. “Mas sua pele estava quente demais, seca demais.

 “Você está com febre”, disse Teodoro tocando sua testa e desidratada. “Vamos para dentro”. Ele a carregou até a casa, deitando-a na rede. Amélia tentou protestar, dizer que tinha trabalho a fazer, mas seu corpo traía suas palavras. Tremores começaram a sacudi-la, apesar do calor. Teodoro conhecia os sinais. O sertão cobrava seu preço de quem não o respeitava. E o calor extremo poderia matar tão certamente quanto frio ou fome.

 Preparou com pressas frias, forçou-a a beber água. cobriu as janelas para manter o interior o mais fresco possível. Durante todo aquele dia e a noite que se seguiu, ele não saiu do lado dela. A febre subia e descia como marés, e Amélia delirava, murmurando palavras desconexas sobre sua mãe, sobre tempestades, sobre estar perdida.

 Teodoro limpava seu rosto com panos úmidos, segurava sua mão quando ela gritava em meio aos pesadelos, sussurrava palavras de conforto que não sabia se ela ouvia. “Não me deixe”, implorava ela em seus momentos de lucidez. “por favor, não me deixe sozinha.” “Estou aqui”, respondia ele, sempre apertando sua mão. “Não vou a lugar nenhum”.

 Mas quando a febre piorou na segunda noite, Teodoro sentiu o pânico real pela primeira vez em anos. Ela estava queimando, a respiração rápida e superficial, os lábios rachados, apesar de toda a água que ele forçava goela abaixo. Precisava de um médico, de remédios que ele não tinha, de ajuda que estava a dias de distância.

 Pensou em montar seu cavalo e cavalgar até a vila, mas isso significaria deixá-la sozinha por horas. talvez mais tempo do que ela tinha. Pensou em carregá-la consigo, mas a viagem sob aquele sol poderia matá-la mais rápido. Estava preso, impotente, assistindo a única pessoa que havia se importado com ele em anos definhar diante de seus olhos.

 “Você não vai morrer”, disse ele em voz alta, “maais para si mesmo que para ela. Não vou deixar”, me ouviu, Amélia? Você não tem permissão para morrer. Foi então que ele se lembrou das ervas. Amélia havia mencionado que sua mãe conhecia plantas medicinais e ele a tinha visto colhendo folhas na catinga algumas vezes.

 Tinha que haver algo, alguma planta que pudesse ajudar a baixar a febre, a hidratar, a fortalecer. Deixou-a por breves minutos, correndo até o quartinho onde ela guardava suas coisas. revirou baús até encontrar um pequeno caderno, páginas amareladas cobertas com caligrafia feminina delicada, o diário de receitas de sua mãe.

 Voltou correndo, foliando as páginas freneticamente à luz da lamparina. Tinha que haver algo. Tinha que lá uma receita para febre do calor, chá de folhas de malva com raiz de velame, compressas de babosa, banhos com água de aroeira. Teodoro trabalhou a noite toda, saiu no escuro, arriscando-se com cobras e escorpiões, procurando as plantas certas com apenas uma lamparina para guiá-lo.

 A cainga noturna era um lugar perigoso, mas ele não tinha medo. Tinha apenas determinação. Encontrou a malva perto do riacho seco. O velame crescia entre pedras. A aroeira era mais difícil, mas finalmente localizou uma árvore retorcida no topo de um morro. Arrancou cascas, folhas, raízes, enchendo um saco com tudo que precisava.

 De volta à casa, preparou o chá conforme as instruções. O cheiro era amargo, forte, mas quando forçou a Mélia a beber, ela engoliu obedientemente, mesmo inconsciente. Ele preparou as compressas, aplicou a babosa em sua pele queimada, banhou-a com água fresca, infusionada com aeira, e então esperou. sentou-se ao lado da rede, segurando a mão dela, rezando para todos os santos que sua mãe havia lhe ensinado a honrar, mesmo que ele a muito tivesse deixado de acreditar, prometeu coisas que nem sabia se poderia cumprir. Barganha desesperada de um homem que

percebia tarde demais o quanto aquela mulher havia se tornado essencial para sua existência. O amanhecer chegou pintando o céu de rosa e laranja. Teodoro estava ainda acordado, exausto, mas vigilante, quando Amélia finalmente abriu os olhos. Pela primeira vez em dois dias, seu olhar estava claro, focado.

 Teodoro Sua voz era um sussurro rouco. Estou aqui. Ele se inclinou sobre ela, tocando seu rosto. A febre havia baixado. Não tinha desaparecido completamente, mas estava menor, controlável. Quanto tempo? Dois dias. Você esteve muito doente. Sua voz tremeu, apesar do esforço para mantê-la firme. Pensei que ia te perder. Amélia tentou sorrir. Difícil se livrar de mim assim.

 Mas Teodoro não achou graça. Segurou o rosto dela entre as mãos, olhando-a intensamente. Não brinque com isso. Você não sabe. Não faz ideia do que foi ver você assim. Algo em seu tom fez Amélia se calar. Ela viu então o que ele não havia dito em palavras. O terror absoluto, o desespero, a revelação de sentimentos que ele ainda lutava para nomear.

 “Desculpe por te assustar”, disse ela suavemente. “Não se desculpe, apenas fique! Fique viva, fique comigo. Vou ficar.” Ela levantou uma mão trêmula e tocou o rosto dele, as cicatrizes que já não via mais como marcas, mas como parte do mapa do homem que amava. Prometo. Teodoro fechou os olhos, pressionando a palma dela contra seu rosto, deixando-se sentir pela primeira vez em anos.

 Quando os abriu novamente, havia lágrimas, mas ele não tentou escondê-las. Eu te amo”, disse, as palavras saindo duras, desacostumadas, mas verdadeiras. Sei que não tenho direito, que talvez seja cedo demais, que você pode não sentir o mesmo, mas preciso que você saiba. Te amo, Amélia, e a ideia de perder você me apavorou mais do que qualquer coisa que já vivi.

 Os olhos de Amélia se encheram de lágrimas também. Também te amo”, sussurrou desde que cheguei. “Talvez desde aquela tempestade há 12 anos. Te amo, Teodoro Campos, com cicatrizes e tudo. Ele a beijou, então, um beijo suave, cuidadoso, consciente da fragilidade dela. Mas havia promessa naquele beijo, compromisso, a decisão de dois corações feridos de se arriscarem mais uma vez.

 Quando se separaram, Amélia estava sorrindo, apesar da exaustão. Me usa os remédios da minha mãe? Usei. Funcionaram. Ele mostrou o caderno. Seu legado salvou você. Não, corrigiu Amélia. Você me salvou de novo. Os dias seguintes foram de recuperação lenta.

 Amélia ganhava força gradualmente, primeiro conseguindo sentar, depois ficar de pé por curtos períodos, finalmente caminhar cambaleante pelo quarto. Teodoro não a deixava fazer nada, insistindo em cuidar dela como ela havia cuidado da casa todos aqueles meses. Foi durante esse período de convalescência que o mundo exterior finalmente invadiu seu refúgio. Uma tarde, enquanto Teodoro ajudava Amélia a caminhar no quintal, ouviram o som de cavalo se aproximando. Não era apenas um cavalo, mas vários.

Teodoro ficou tenso imediatamente. Visitantes eram raros e múltiplos visitantes nunca eram boa notícia. Entre”, disse a Amélia. “Agora!” Mas era tarde demais. Três cavaleiros já haviam contornado a casa e entrado no quintal. O que liderava era um homem grande, de bigodes fartos e roupas que indicavam posição. Ao lado dele, Damião, o irmão de Teodoro.

 E o terceiro era o padre da vila, padre Cipriano, velho e curvado, mas com olhos afiados como navalha. Teodoro Campos”, disse o homem grande, descendo do cavalo com autoridade. “Sou o coronel Justino, juiz de paz desta região. Vim tratar de um assunto delicado.” Teodoro colocou-se instintivamente entre os visitantes e Amélia.

 “Que assunto? A situação irregular que o senhor mantém aqui.” O coronel olhou para Amélia com desaprovação mal disfarçada. Fomos informados de que mantém uma mulher vivendo em sua propriedade, sem os devidos trâmites legais ou religiosos. Si, Amélia é minha convidada”, disse Teodoro a voz tensa. “Não vejo como isso diz respeito às autoridades.

 Disrespeito quando envolve questões de moralidade e deência pública”, interveio o padre, sua voz fina, mas autoritária. Uma mulher solteira, vivendo sozinha com um homem solteiro, longe dos olhos da comunidade, é uma situação que a igreja não pode ignorar. A igreja não tem jurisdição aqui, retrucou Teodoro.

 Mas eu tenho disse o coronel, e recebi reclamação formal. Ele olhou para Damião, que desviou os olhos, envergonhado, mas determinado. “Meu irmão”, disse Damião, finalmente encontrando coragem para falar. “Fez própria proteção. Você não está em condições de tomar decisões certas. Desde o acidente, todos sabem que você que não é mais o mesmo.

 Não sou o mesmo como A voz de Teodoro era perigosamente baixa. Você sabe do que estou falando. Vive aqui isolado, rejeitando a sociedade. Agora aceita a primeira mulher que aparece sem questionar. Não é comportamento de alguém em pleno uso das faculdades. Você me chama de louco? Teodoro deu um passo ameaçador em direção ao irmão.

 “Chamo de alguém que precisa de proteção”, disse Damião, mas sua voz tremeu. “E essa mulher também? Quem sabe suas verdadeiras intenções pode estar se aproveitando de você, da sua condição. Foi Amélia quem falou então, sua voz ainda fraca, mas firme. Minhas intenções são amar esse homem e construir uma vida com ele.

 Não vejo o que há de irregular nisso. O coronel a estudou com olhar calculista. E você, moça, de onde vem? Qual sua família? Não tenho família. Vim de Kamobim. Fugindo de quê? De nada. Vim porque quis, porque Teodoro procurava uma companheira. Por meio de um anúncio disse o padre com desdém, como se estivesse comprando gado. Isso não é forma cristã de formar uma união.

 Então nos casaremos, disse Teodoro abruptamente. Se é isso que querem ouvir, nos casaremos. O silêncio caiu sobre o quintal. Amélia olhou para ele surpresa, os olhos arregalados. Teodoro manteve o olhar fixo nos visitantes. Desafiador. É uma decisão precipitada, começou Damião. É minha decisão cortou Teodoro.

 Amélia, você aceita ser minha esposa? Ela hesitou apenas um momento, processando a proposta abrupta, longe do romântico que talvez imaginasse, mas olhou para ele, para o homem que havia cuidado dela durante a doença, que havia arriscado tudo para salvá-la, que havia finalmente admitido o que sentia, e viu naqueles olhos a mesma determinação que ela sentia. “Aceito”, disse simplesmente.

 O coronel trocou olhares com o padre. Muito bem, mas o casamento terá que ser feito propriamente na igreja com testemunhas. E antes disso, ele olhou para Amélia. A senhora terá que vir para a vila, ficar numa casa apropriada até a cerimônia. Não pode continuar aqui sem estar casada. Não disse Teodoro imediatamente.

 Ela fica aqui, está se recuperando de doença grave. Exatamente por isso, deveria estar sob cuidados apropriados”, argumentou o padre. “Na casa de alguma família respeitável que possa zelar por ela adequadamente? Eu zelo por ela adequadamente. O senhor é um homem solteiro”, insistiu o coronel. “E há regras, Teodoro, mesmo aqui, longe de tudo, há regras. Se querem se casar, que seja feito direito.

A moça vai para a vila, fica hospedada na casa da família Silva por duas semanas, enquanto os bands são lidos e os preparativos feitos. Depois haverá cerimônia apropriada e então ela pode voltar como sua esposa legítima. E se nos recusarmos? Perguntou Amélia. O coronel suspirou como se a resposta lhe desagradasse.

 Então, eu teria que invocar minha autoridade como juiz e remover a senhora à força por seu próprio bem. E poderia questionar a capacidade de Teodoro de manter estas terras, dado seu estado mental questionável. A ameaça pairou no ar como a butre sobre carniça. Teodoro cerrou os punhos, cada músculo do corpo tenso, pronto para lutar. Mas Amélia colocou uma mão em seu braço. Está bem, disse ela calmamente. Irei para a vila.

Amélia, não é apenas duas semanas, disse ela, olhando-o nos olhos. E depois voltarei como sua esposa. Podemos esperar duas semanas. Não quero que você vá. Sei. Mas às vezes temos que fazer o que não queremos para proteger o que amamos. Ela tocou seu rosto suavemente. Você me ensinou isso. Teodoro sabia quando estava derrotado.

 Não pelo coronel ou pelo padre, mas pela sabedoria dela. Resistir agora poderia custar-lhe tudo. As terras, a liberdade, a possibilidade de futuro com ela. Tinha que deixá-la ir, confiar que ela voltaria. Duas semanas”, disse ele a voz rouca. “Nem um dia a mais. Nem um dia a mais”, prometeu ela. Os preparativos foram rápidos.

 Amélia empacotou algumas roupas numa trouxa, pegou o caderno de sua mãe, guardou as flores secas que Teodoro havia lhe dado. Cada movimento era lento, como se quisesse memorizar a casa, o lugar que havia se tornado lar. Quando chegou a hora de partir, Teodoro a acompanhou até o cavalo. Os outros já estavam montados, impacientes para voltar antes do anoitecer.

 Ele segurou suas mãos sem se importar com quem estava olhando. “Volte para mim”, disse ele. “Sempre”, prometeu ela. “Mesmo que o sertão inteiro tente me impedir, eu volto.” Ela montou na garupa do cavalo do coronel, olhando para trás enquanto se afastavam. Teodoro ficou parado no quintal, observando até que fossem apenas uma nuvem de poeira no horizonte. Depois, até a poeira desaparecer.

 Damião havia ficado para trás, desconfortável. “Teodoro, eu vai embora”, disse Teodoro, sem olhar para ele. “Agora só queria te proteger.” “E proteger?” Teodoro finalmente se virou e seu irmão recuou com o que viu em seus olhos. Você destruiu a única coisa boa que aconteceu na minha vida em anos. Isso não é proteção, Damião, é inveja.

 Eu não vá embora, repetiu Teodoro. E não volte. Você não é mais meu irmão. Damião montou seu cavalo com movimentos rígidos. Vai me agradecer um dia! Murmurou, mas sem convicção, nunca. Quando Damião partiu, Teodoro voltou para a casa vazia. E pela primeira vez, desde que Amélia chegara, o silêncio voltou, pesado, sufocante, insuportável. “Duas semanas”, disse a si mesmo. “Apenas duas semanas.

” Mas enquanto o sol se punha sobre a cainga, pintando tudo de vermelho sangue, ele não conseguia afastar o pressentimento de que aquelas seriam as duas semanas mais longas de sua vida e que algo ainda estava por vir, algo que testaria o amor deles de formas que nem imaginavam. Os primeiros três dias sem Amélia foram os piores.

 Teodoro acordava esperando ouvir o som dela na cozinha, o cheiro de café fresco, a melodia suave que ela cantarolava ao trabalhar. Mas havia apenas silêncio. Um silêncio tão denso que parecia ter substância, preenchendo cada canto da casa como água parada. Ele tentava manter-se ocupado.

 Consertou cercas que não precisavam de conserto. Organizou ferramentas que já estavam organizadas. Cavou um novo poço, mesmo sabendo que o existente ainda servia. qualquer coisa para não pensar, para não sentir o vazio que ela havia deixado. Mas à noite, quando o trabalho acabava e não havia mais nada para distraí-lo, o vazio o engolfava completamente.

 Sentava-se na varanda, olhando as estrelas, fumando cigarros de palha até a língua ficar amarga, perguntando-se como havia vivido assim por tanto tempo. A solidão, que antes era sua companheira familiar, agora parecia uma prisão. Amélia havia aberto portas dentro dele, que não poderiam mais ser fechadas. Havia acendido luzes em lugares que ele mantivera escuros por anos.

 E agora, sem ela, essas salas vazias ecoavam com ausência. No quarto dia, ele não aguentou mais. selou o cavalo antes do amanhecer e cavalgou até a vila. Não se importava com o que diriam, com as regras que haviam imposto. Precisava vê-la, nem que fosse de longe, apenas para ter certeza de que ela estava bem.

 Chegou à vila quando o sol mal havia nascido. As ruas estavam vazias, apenas alguns cachorros vagando e uma velha varrendo à frente de sua casa. Teodoro sabia onde ficava a propriedade da família Silva, uma das maiores casas da praça principal, caiada de branco, com janelas de madeira pintadas de azul.

 Ficou do outro lado da rua, escondido parcialmente atrás de uma árvore, sentindo-se ridículo, mas incapaz de ir embora. E então a viu. Amélia saiu para o quintal dos fundos, carregando uma bacia de roupas. Mesmo de longe, ele percebeu que ela havia emagrecido ainda mais, que seus movimentos eram lentos, cansados. Ela parou no meio do quintal, como se sentisse algo.

 Virou-se lentamente e seus olhos encontraram os dele através da distância. Por um longo momento, ficaram apenas se olhando duas almas conectadas através do espaço que o separava. Amélia levou a mão ao coração, um gesto simples que dizia tudo. Eu estou aqui. Estou esperando. Volte para mim. Teodoro fez o mesmo gesto, pressionando a palma sobre o peito.

 Depois forçou-se a virar o cavalo e partir antes que alguém o visse e tornasse as coisas piores para ela. Mas aquele breve vislumbre foi o suficiente. Ela estava viva, estava esperando. Podia aguentar mais alguns dias. O que Teodoro não sabia era o que Amélia estava enfrentando na casa do Silva.

 Dona Conceição, a matriarca da família, era uma mulher de língua afiada e opiniões ainda mais cortantes. Desde o momento em que Amélia chegou, deixou claro que considerava a situação toda profundamente inadequada. “Uma moça de família não se oferece a um homem através de anúncio”, disse ela no primeiro jantar, sua voz alta o suficiente para que todos na mesa ouvissem. É comportamento vulgar.

desesperado. Amélia manteve os olhos no prato, mastigando lentamente, recusando-se a ser provocada. “E viver sozinha com ele por meses antes do casamento”, continuou dona Conceição, abanando-se dramaticamente. Só Deus sabe o que aconteceu naquele lugar isolado. A reputação da moça está arruinada, completamente arruinada. “Mãe”, interveio seu filho, Dr.

 Anselmo, desconfortável. A moça está aqui como nossa convidada. Devemos tratá-la com respeito. Respeito se ganha, filho. Não se dá de graça para qualquer uma. Amélia finalmente levantou os olhos. A senhora tem razão disse calmamente. Respeito se ganha e espero ganhar o seu através do meu trabalho enquanto estiver aqui. Não pretendo ser fardo para ninguém.

 Dona Conceição pareceu surpresa pela resposta comedida. esperava lágrimas ou raiva, não dignidade tranquila. Fungou e voltou sua atenção para a comida, mas Amélia percebeu o olhar avaliativo que a mulher lhe lançou. Os dias na casa do Silva eram longos e difíceis. Amélia acordava antes de todos e já estava trabalhando quando a família descia para o café.

 varria, lava, cozinhava, costurava, nunca reclamava, nunca pedia nada. À noite, quando finalmente podia se recolher ao quartinho minúsculo que lhe haviam dado, escrevia cartas para Teodoro, que sabia que não poderia enviar. Meu amor, escrevia à luz de uma vela. Faltam 10 dias, nove, oito.

 Cada número é uma eternidade, mas também uma promessa cumprida. Estou contando os minutos até poder voltar para casa. Para você. Na vila, as fofocas continuavam. As mulheres coxixavam quando Amélia passava indo ao mercado. Os homens faziam comentários de duplo sentido que faziam suas esposas rirem atrás dos leques. Ela ignorava tudo, mantendo a cabeça erguida, os olhos fixos à frente.

 Não devia satisfação a ninguém, exceto a Teodoro e a si mesma. Foi no sétimo dia que tudo começou a desmoronar. Amélia estava no mercado comprando fita para o vestido que estava costurando para o casamento quando ouviu vozes alteradas vindas da taberna ao lado. Uma delas reconheceu imediatamente: “Damião, estou dizendo a vocês, meu irmão não está em condições de casar”, dizia ele claramente embriagado.

 “Aquela mulher está se aproveitando dele. vai casar, tomar as terras e depois vai abandoná-lo, ou pior. E o que você sugere? Perguntou outra voz que Amélia não reconheceu. Que alguém faça alguma coisa, que a expulse daqui antes que seja tarde demais, que mostre a ela que não é bem-vinda.

 Amélia sentiu o sangue gelar, pagou rapidamente suas compras e saiu, mas percebeu olhares a seguindo, sussurros aumentando em seu rastro. Algo estava se formando, uma hostilidade que ia além de fofoca casual. Havia perigo real no ar. Naquela noite, deitada em sua cama estreita, Amélia não conseguia dormir. Ouvia ruídos lá fora, que poderiam ser apenas o vento, ou poderiam ser passos.

Via sombras, que poderiam ser galhos balançando, ou poderiam ser figuras observando. O medo que havia mantido afastado começou a se infiltrar. Mas junto com ele veio determinação. Não deixaria que a assustassem. Não desistiria de Teodoro. Não depois de tudo. Mas o destino tinha outros planos. No dia, quando faltavam apenas cinco para o casamento, Amélia acordou com um pressentimento horrível. Algo estava errado.

 Podia sentir nos ossos, na respiração, no ar pesado da manhã. foi ao mercado como sempre, mas desta vez percebeu que estava sendo seguida. Dois homens que ela não conhecia mantinham-se a uma distância, observando cada movimento seu. Quando voltou para a casa do Silva, eles continuaram lá, agora do outro lado da rua, fumando e conversando baixo. “Dona Conceição”, disse Amélia quando chegou, “Há homens me seguindo.

” A mulher olhou pela janela e franziu a testa. São capangas do coronel Justino. Provavelmente estão vigiando para garantir que você não fuja antes do casamento. Mas Amélia não tinha tanta certeza. Havia algo nos olhares daqueles homens que não era apenas vigilância, era ameaça. Naquela noite não conseguiu fechar os olhos.

 ficou sentada junto à janela, olhando as estrelas, pensando em Teodoro. Estaria ele também acordado, olhando o mesmo céu? Estaria sentindo a mesma inquietação que a consumia? Foi então que ouviu passos suaves no corredor, uma porta rangendo. Seu coração disparou, levantou-se silenciosamente, pressionando o ouvido contra sua porta. Vozes abafadas vinham debaixo, urgentes, tensas.

 Não podemos permitir esse casamento. Desgraça para a família. Tem que sair da vila. Amélia reconheceu a voz de Damião entre os sussurros. Ele estava ali na casa conspirando e não estava sozinho. Sem pensar duas vezes, Amélia vestiu-se rapidamente, pegou sua trouxa com as poucas coisas que tinha e abriu a janela do quarto. Dava para o quintal dos fundos.

 Era um salto considerável, mas não impossível. Não tinha escolha. Algo estava prestes a acontecer. E ela precisava sair dali. Saltou, aterriçando desajeitadamente, torcendo o tornozelo, mas sem quebrar nada. Ignorou a dor e correu, atravessando quintais, pulando cercas, evitando as ruas principais.

 Não tinha plano além de sair da vila, de chegar a algum lugar seguro, até poder enviar mensagem para Teodoro. Mas para onde ir? A fazenda ficava a dois dias de caminhada e ela não conhecia o caminho de noite. Havia outras fazendas, outros sítios, mas não conhecia ninguém. Não sabia em quem confiar.

 Continuou correndo até que a vila ficou para trás, até que estava na estrada empoeirada que cortava o sertão. A lua estava quase cheia, iluminando a paisagem com luz prateada. Mandacaros projetavam sombras estranhas como sentinelas silenciosas. O ar noturno era surpreendentemente frio após o calor do dia, e Amélia tremeu em seu vestido fino, mas continuou andando, mancando pelo tornozelo machucado, forçando-se a avançar.

 Não sabia há quanto tempo caminhava quando ouviu o som que a encheu de terror. Cavalos vindos de trás, rapidamente se aproximando, olhou desesperadamente ao redor, procurando esconderijo. Mas a catatinga ali era baixa, esparsa, não havia onde se esconder. Os cavaleiros a alcançaram em minutos.

 Eram três rostos cobertos por lenços, mas Amélia reconheceu um deles pela silhueta, Damião. Os outros dois eram provavelmente os homens que a haviam seguido durante o dia. “Até onde pensou que ia, moça?”, disse um deles, a voz embargada pelo lenço. “Me deixem em paz”, disse Amélia, tentando manter a voz firme, apesar do medo. “Não fiz nada de errado.” “Você é o que há de errado”, disse Damião, descendo do cavalo.

 “Meu irmão merece melhor que uma aproveitadora que apareceu do nada. Teodoro me escolheu e eu o escolhi. Vocês não têm direito. Temos todo o direito de proteger um dos nossos. Interrompeu o outro homem. E você não é uma dos nossos, nunca será. Amélia deu um passo atrás, depois outro.

 Seus olhos procuravam freneticamente por rota de fuga, mas estava cercada. Os homens avançavam lentamente, como predadores acuando presa. “O que vão fazer?”, perguntou a voz finalmente tremendo. “Apenas dar uma lição”, disse Damião. “Mostrar que forasteiras não são bem-vindas, que algumas pessoas sabem qual é seu lugar.” Foi então que Amélia correu.

 Não tinha chance contra três homens montados, mas instinto de sobrevivência a impeliu. Correu para o lado da estrada, entrando na catinga, espinhos rasgando seu vestido e pele, pedras torcendo ainda mais seu tornozelo machucado. Atrás dela ouviu risos, o som de cavalos sendo redirecionados.

 estavam brincando com ela, sabendo que não poderia ir longe. Amélia continuou correndo cegamente, lágrimas de dor e medo escorrendo pelo rosto. Não podia terminar assim. Não depois de tudo. Não quando estava tão perto de ter a vida que havia sonhado. Foi quando seu pé encontrou o ar. havia chegado à beira de um barranco sem perceber na escuridão.

 Por um momento eterno, ficou suspensa, braços girando, buscando equilíbrio. Depois caiu. Não foi uma queda longa, talvez 3 m, mas foi suficiente. Aterriçou duramente entre rochas e arbustos espinhosos, o ar sendo expulso de seus pulmões. Dor explodiu em seu corpo, aguda e ofuscante. Tentou gritar, mas não conseguiu encontrar fôlego. Lá em cima, ouviu as vozes dos homens.

 Ela caiu. Deixa, a queda vai ensinar a lição. E se estiver machucada? Sério? Problema dela. Vamos embora antes que alguém nos veja. O som dos cavalos se afastando. Depois silêncio. Amélia ficou deitada na escuridão. Cada respiração uma agonia. Incapaz. O céu acima estava cheio de estrelas indiferentes à sua dor.

 Pensou em Teodoro, em como ele estaria esperando por ela. Pensou que talvez morresse ali sozinha e ele nunca saberia o que aconteceu. Teodoro sussurrou para as estrelas. me perdoe. E então perdeu a consciência. Enquanto isso, na fazenda, Teodoro acordou sobressaltado no meio da noite. Havia sonhado com Amélia, um pesadelo onde ela o chamava, mas ele não conseguia alcançá-la.

Sentou-se na rede, coração disparado, suor frio na testa, apesar do ar noturno ser fresco. Algo estava errado. Sabia com certeza absoluta. Amélia estava em perigo. Não parou para questionar o pressentimento. Vestiu-se rapidamente, selou o cavalo, pegou sua faca e partiu.

 Não tinha plano, apenas a certeza urgente de que precisava chegar até ela, que cada minuto contava. cavalgou pela noite, forçando o cavalo a velocidades perigosas na estrada escura. A lua iluminava o caminho, mas também criava sombras enganosas. Não importava. Continuou, impelido por algo além da razão, um fio invisível conectando-o a ela, puxando-o na direção certa.

 Foi quando viu o lenço no chão, branco contra a terra escura. Desceu do cavalo e o pegou. Pertencia à Amélia, reconheceu o bordado que ela havia feito. Estava ali no meio da estrada como um sinal ou um aviso. Amélia! Gritou, sua voz ecoando na noite. Amélia, onde você está? Apenas o silêncio respondeu e o canto distante de algum pássaro noturno. Teodoro examinou o chão com a luz da lua.

 Ali marcas de cavalos, muitos cavalos e marcas de pés correndo, saindo da estrada. Seguiu o rastro agora a pé, levando o cavalo pela rédia. Os sinais eram claros para alguém que conhecia a caatinga. Galhos quebrados, pegadas na terra, um pedaço de tecido preso em um espinho. Ela havia estado ali, havia corrido.

 Amélia! gritou novamente mais alto. Amélia, responda. E então ouviu, fraco, quase imperceptível, um gemido. Vinha de algum lugar à esquerda mais adiante. Correu na direção do som e quase caiu ele mesmo no barranco. Parou no último segundo, ajoelhou-se na beira e olhou para baixo.

 Lá estava ela, deitada entre rochas e móvel, seu vestido rasgado e manchado de sangue. Por um segundo terrível, ele pensou que estava morta. Depois viu o leve movimento de seu peito, respirando ainda viva. “Aguenta aí”, disse ele à voz embargada. “Já vou buscar você.” amarrou a corda que trazia na cela a uma árvore robusta e desceu o barranco.

Rochas soltas rolavam sob seus pés, espinhos rasgavam suas mãos, mas ele não sentia nada além do pânico absoluto. Tinha que alcançá-la, tinha que salvá-la. Quando finalmente chegou ao lado dela, avaliou rapidamente os danos. Estava coberta de arranhões e contusões, sangue secando em seu rosto e braços. Uma das pernas estava em ângulo estranho, mas estava viva.

 Estava respirando. Amélia, disse ele suavemente, tocando seu rosto. Sou eu. Você está segura agora. Ela abriu os olhos lentamente, desfocados de dor. Levou um momento para reconhecê-lo. Quando reconheceu, lágrimas começaram a cair. Teodoro sussurrou. Você veio sempre, disse ele a voz quebrada.

 sempre virei quando você precisar. Agora vou te tirar daqui. Ele a ergueu com cuidado infinito, cada gemido de dor dela uma facada em seu coração. Era difícil subir carregando-a, mas era forte, fortalecido pelo trabalho de anos e pela determinação absoluta. Puxou-se pela corda com um braço enquanto segurava-a com o outro, músculos queimando, mãos sangrando, onde a corda cortava a pele.

 finalmente alcançou o topo, deitando-a suavemente na terra. A Melis estava consciente, mas claramente em choque, tremendo violentamente. “Quem fez isso?”, perguntou Teodoro, tirando sua camisa e cobrindo-a. “Diga-me quem fez isso com você.” “Damião”, sussurrou ela. “E outros queriam me assustar, me fazer ir embora”. Teodoro sentiu uma raiva tão intensa que por um momento, não conseguiu ver. Seu irmão, seu próprio sangue havia feito isso.

 Havia machucado a mulher que ele amava. “Vou matá-lo”, disse ele a voz baixa e mortal. “Não.” Amélia agarrou sua mão com força surpreendente. “Não vale a pena. Apenas apenas me leve para casa, por favor.” “Casa?” A palavra o atingiu. Ela chamou a fazenda de casa.

 Mesmo depois de tudo, mesmo machucada e sangrando, era para lá que queria voltar para ele. “Vou te levar”, prometeu. “Mas primeiro preciso cuidar desses ferimentos”. Trabalhou rapidamente, usando tiras de sua própria camisa para fazer bandagens improvisadas e mobilizando a perna quebrada com galhos. Cada toque arrancava gemidos dela, mas Amélia não reclamou, apenas apertou os dentes e deixou-o trabalhar.

 Quando terminou, colocou-a cuidadosamente no cavalo, montando-a atrás dela e mantendo-a segura contra seu peito. Começou a viagem de volta mais devagar agora, cuidadoso com cada solavanco que poderia causar mais dor. Amélia desmaiou várias vezes durante a viagem. Toda vez que acordava, ele estava ali segurando-a, murmurando palavras de conforto.

 Estou aqui. Você está segura. Quase chegamos. O sol estava nascendo quando finalmente alcançaram a fazenda. Teodoro a carregou diretamente para dentro, deitando-a em sua própria rede. Acendeu fogo, aqueceu água, preparou os mesmos chás de ervas que havia usado quando ela teve febre.

 durante todo aquele dia e a noite seguinte cuidou dela, limpou seus ferimentos, trocou suas bandagens, forçou-a a beber água e chá. Quando ela gritava de dor, ele segurava sua mão. Quando tinha febre, ele a refrescava com panos úmidos. Quando chorava, ele a consolava.

 Foi na segunda manhã que Amélia finalmente acordou verdadeiramente, os olhos claros pela primeira vez desde a queda. “Quanto tempo?”, perguntou a voz rouca. “Dois dias”, respondeu Teodoro, que estava sentado ao lado da rede. Ele não havia dormido. Sua aparência era selvagem, barba por fazer olhos vermelhos. “Como se sente?” como se tivesse caído de um barranco”, disse ela tentando sorrir. “Nunca mais”, disse Teodoro, e havia algo feroz em sua voz.

“Nunca mais vou deixar que alguém te machuque. Nunca mais vou deixar você sair de perto de mim.” Teodoro, não. Interrompeu ele. “Me escute. Não me importa mais com o que a vila pensa, com o que meu irmão acha, com regras ou propriedades ou qualquer outra coisa. Você é minha, eu sou seu e ninguém, ninguém vai nos separar de novo.

 Mas o casamento, esqueça o casamento da igreja. Nos casaremos aqui agora, apenas nós dois, aos olhos de Deus e do sertão, que são os únicos que importam. Ele pegou as mãos dela. Amélia Tavares, você aceita ser minha esposa? Lágrimas escorriam pelo rosto dela, mas estava sorrindo. Sim, mil vezes sim.

 E você promete nunca mais me deixar? Prometo. Então, aos olhos do céu, da terra e do meu coração, eu a declaro minha esposa, e nada, nem ninguém mudará isso. Ele se inclinou e a beijou suave, mas profundamente. E quando se separaram, ambos sabiam que algo sagrado havia acontecido ali naquela casa humilde, no meio do nada. Não precisavam de padre nem papel.

 O que tinham era mais profundo, mais real, mas a paz duraria pouco, porque lá na vila Damião acordava com ressaca e medo crescente. A moça havia caído e eles haviam fugido. E se ela estivesse morta? E se Teodoro descobrisse? E se a tempestade estava longe de terminar? Na verdade, o pior ainda estava por vir. A recuperação de Amélia foi lenta, mas constante.

 Teodoro não saía do lado dela, cuidando de cada necessidade, com uma ternura que contrastava com sua aparência rude. Ele cozinhava, limpava, trocava curativos, preparava banhos mornos para aliviar as dores. À noite dormia no chão ao lado da rede dela, acordando ao menor gemido para garantir que estava bem. Você precisa descansar”, dizia Amélia, vendo as olheiras profundas sob seus olhos.

 “Vai adoecer também ou descansar quando você estiver completamente curada”, respondia ele, teimoso, como sempre. levou três semanas para que Amélia conseguisse ficar de pé sem ajuda. A perna quebrada estava sarando, mas ainda doía e ela mancava ao caminhar.

 Os arranhões e contusões haviam se transformado em cicatrizes, algumas que desapareceriam com o tempo, outras que permaneceriam como lembrança daquela noite terrível, mas algo mais havia mudado nela. Havia uma força nova em seus olhos, uma determinação forjada pelo fogo da adversidade. Ela havia enfrentado o pior que o mundo tinha a oferecer e sobrevivido. Não havia mais nada que pudesse assustá-la.

 Durante todo esse tempo, ninguém da vila veio visitá-los, nem Damião, nem o coronel, nem o padre. Era como se um manto de silêncio tivesse caído sobre a situação, todos envolvidos esperando para ver o que aconteceria a seguir. Foi Teodoro quem finalmente rompeu o impasse. Numa manhã, quando Amélia já estava forte o suficiente para ficar sozinha por algumas horas, ele selou seu cavalo.

 “Para onde vai?”, perguntou ela, preocupação imediata em sua voz. “A vila! Tenho assuntos a resolver. Teodoro não é perigoso. Eles podem. Podem o quê? Ele se virou para ela e havia algo diferente em seus olhos. Não raiva, mas resolução inabalável. Já me tiraram tudo uma vez. Não vão tirar de novo.

 E há coisas que um homem precisa fazer. Amélia. Coisas que não podem ficar sem resposta. Ela sabia que não podia detê-lo e, no fundo, sabia que ele estava certo. Algumas contas precisavam ser acertadas. Então volte para mim, disse ela simplesmente inteiro. Sempre. A cavalgada até a vila foi longa, dando a Teodoro o tempo para pensar.

 Não ia em busca de vingança, embora a raiva ainda queimasse em seu peito quando pensava no que haviam feito com Amélia. ia em busca de justiça e de encerramento. Chegou à vila ao meio-dia, quando o sol estava no ponto mais alto e as ruas quase vazias devido ao calor. As poucas pessoas que estavam fora pararam o que faziam quando o viram passar. Sussurros o seguiam como sombras, mas ele não lhes dava atenção.

 Tinha um destino específico em mente. A ferraria de Damião ficava na beira da praça. Teodoro podia ouvir o som do martelo contra o metal antes mesmo de chegar. Desceu do cavalo, amarrou-o e entrou. Damião estava de costas, trabalhando numa ferradura. Quando ouviu passos, virou-se e empalideceu ao ver o irmão. Teodoro, eu cale a boca, disse Teodoro, sua voz baixa, mas carregada de autoridade.

 Você não fala, apenas escuta. Damião engoliu em seco, colocando o martelo de lado, as mãos tremendo ligeiramente. “Você quase matou a mulher que eu amo”, começou Teodoro. Você e seus capangas covardes a perseguiram como animais, a machucaram, a deixaram para morrer. E por quê? Por inveja, por maldade, por algum conceito distorcido de estar me protegendo? Eu não queria que ela se machucasse tanto”, disse Damião. A voz fraca. Foi um acidente.

 Ela correu, caiu depois que vocês a aterrorizaram, Teodoro deu um passo à frente e Damião recuou instintivamente. Você sabe o que eu deveria fazer? Deveria te espancar até você não conseguir se levantar. Deveria arrastar você até o coronel e exigir justiça. Deveria fazer você sentir uma fração do que ela sentiu. Então faça disse Damião. E havia algo como alívio em sua voz.

Faça o que tem que fazer. Mereço. Teodoro olhou para o irmão. Realmente o olhou pela primeira vez em anos. viu um homem pequeno, diminuído por suas próprias escolhas, consumido por amarguras antigas, e sentiu pena. “Não vou fazer nada disso”, disse finalmente, “Porque você não vale a pena. Porque guardar ódio é como beber veneno esperando que o outro morra.

 E porque Amélia está viva e se recuperando, e isso é tudo que importa.” Damião piscou surpreso. Então, está me perdoando? Não disse Teodoro com firmeza. Nunca vou perdoar o que você fez, mas estou te deixando ir. Você não existe mais para mim. Não é meu irmão, não é minha família.

 É apenas um estranho que uma vez compartilhou meu sangue. Ele se virou para sair, depois parou. Mas se você ou qualquer outra pessoa da vila chegar perto dela de novo, se tentarem causar qualquer problema, juro por tudo que é sagrado que não serei tão compassivo. Entendeu? Damião assentiu incapaz de falar. Teodoro saiu da ferraria e foi direto para a casa do coronel Justino.

 A porta foi aberta por uma empregada que o olhou nervosamente antes de correr chamar o patrão. O coronel apareceu alguns minutos depois, tentando manter a compostura, mas claramente desconfortável. Teodoro, não esperava. Vim fazer uma declaração oficial, interrompeu Teodoro. Amélia Tavares e eu estamos casados.

 Não pela igreja, mas pelo direito que temos de escolher nossas próprias vidas. Ela é minha esposa em todos os sentidos que importam e exijo que seja tratada como tal. Teodoro, você sabe que a lei, a lei disse Teodoro, sua voz cortante como lâmina. Diz que um homem tem direito a proteger sua família. Diz que agressão é crime.

 Diz que quem machuca outro deve responder. Então, aqui está minha pergunta, coronel. Você quer que eu processe os homens que atacaram minha esposa? Porque posso fazer isso, posso trazer ela aqui, mostrar as cicatrizes, contar a história e todos na vila vão saber exatamente que tipo de justiça o senhor aplica. O coronel ficou vermelho, a papada tremendo.

 Isso é uma ameaça? É uma promessa. Deixe-nos em paz e nós deixamos vocês em paz. Mas se interferir de novo na minha vida, na nossa vida, farei questão de que todos saibam o que acontece sob sua jurisdição. Houve um longo silêncio. Finalmente, o coronel suspirou. Muito bem. Considero o assunto encerrado.

 Você e a moça podem viver como quiserem, contanto que não causem problemas. Nunca causamos”, disse Teodoro. “Os problemas sempre vieram de vocês.” Saiu da casa do coronel sentindo algo que não sentia há anos. Vitória. Não era uma vitória grandiosa, mas era sua.

 Havia protegido o que amava, havia estabelecido limites, havia se colocado de pé diante daqueles que tentaram derrubá-lo. Sua última parada foi na igreja. Padre Cipriano estava arrumando flores no altar quando Teodoro entrou. O velho olhou para cima, surpresa e apreensão em seu rosto enrugado. “Vim falar sobre casamento”, disse Teodoro sem preâmbulos. “Se veio pedir bênção, preciso te dizer que a situação é irregular.

” Não vim pedir bênção”, interrompeu Teodoro. “Vim informar que Amélia e eu nos consideramos casados, mas se um dia ela quiser uma cerimônia, uma celebração, isso será a escolha dela, não sua, não da igreja dela. E nesse dia, espero que o Senhor se lembre de que Deus vê o coração, não as formalidades.” O padre abriu a boca para responder, depois a fechou.

 Estudou o homem à sua frente, vendo algo que talvez não tivesse visto antes. Convicção, propósito, fé, não na igreja, mas em algo maior. Deus trabalha de formas misteriosas, disse finalmente o padre. E quem sou eu para questionar seus caminhos? Se vocês encontraram um ao outro, se há amor verdadeiro entre vocês, talvez isso seja bênção suficiente. Teodoro não esperava isso.

 Assentiu uma concessão mútua de respeito. Obrigado, padre. Quando saiu da igreja, o sol estava começando a descer. Montou seu cavalo e começou a longa jornada de volta para casa, para a Amélia, para a vida que estavam construindo juntos. Chegou à fazenda quando as primeiras estrelas apareciam no céu. Amélia estava na varanda esperando como sabia que estaria.

 Quando o viu, seu rosto se iluminou com um sorriso que fez todo o cansaço da viagem valer a pena. Voltou, disse ela quando ele subiu os degraus. Prometi que voltaria. Ele a puxou para seus braços, abraçando-a com cuidado para não machucar suas costelas ainda sensíveis. E está resolvido. Ninguém vai nos incomodar de novo.

 Tem certeza? Absoluta. Deixei claro que não somos mais brinquedos deles. Somos livres, Amélia. Finalmente livres. Ela escondeu o rosto em seu peito e ele sentiu lágrimas molhando sua camisa. Mas não eram lágrimas de tristeza, eram de alívio, de felicidade, de um peso finalmente levantado. Aquela noite jantaram juntos na varanda, vendo o céu escurecer e as estrelas multiplicarem-se.

Falaram sobre o futuro, sobre planos para a fazenda, sobre a vida que construiriam. E pela primeira vez, nenhum dos dois sentia a sombra do passado pairando sobre eles. Os dias seguintes trouxeram uma rotina nova. Amélia estava ficando mais forte a cada dia, retomando gradualmente suas tarefas. Teodoro trabalhava na terra, mas agora sempre voltava para almoçar com ela, fazendo questão de compartilhar as refeições, de não deixar que o trabalho roubasse o tempo juntos. E lentamente algo extraordinário começou

a acontecer. A primeira mudança foi pequena, quase imperativa. O viajante que passava pela estrada parou para pedir água. Teodoro deu não apenas água, mas também comida e um lugar para descansar. O viajante partiu agradecido e uma semana depois voltou com sua família, trazendo sementes como presente.

 “Ouvi dizer que são boas pessoas aqui”, disse o homem, “que tratam estranhos com bondade. Isso é raro no sertão.” Depois foi um vaqueiro que havia se perdido durante uma busca por gado. Mélia o acolheu, preparou-lhe uma refeição quente e o vaqueiro saiu, contando para todos que encontrava sobre o casal que vivia nas terras esquecidas, sobre como eram generosos, apesar de terem tão pouco.

 As histórias se espalharam e com elas, lentamente outras pessoas começaram a aparecer. Primeiro esporadicamente, depois com mais frequência. gente que precisava de ajuda, de conselho, de um lugar para descansar. E Teodoro e Amélia nunca recusavam ninguém. Vamos ficar sem mantimentos”, avisou Teodoro uma noite depois de terem acolhido uma família que fugira da seca em outra região.

 “Então, plantaremos mais”, respondeu Amélia simplesmente, “trabalharemos mais, mas não vamos fechar nossa porta, não. Depois de tudo que passamos.” E assim a fazenda começou a se transformar. O que havia sido um exílio se tornou um refúgio. Teodoro construiu um galpão extra para abrigar viajantes.

 Amélia plantou uma horta maior, ensinando outras mulheres suas técnicas. Juntos criaram algo que não esperavam criar, uma comunidade. As crianças foram as primeiras a não ter medo das cicatrizes de Teodoro. Para elas, ele era apenas o homem grande que as deixava alimentar as galinhas e que esculpia brinquedos de madeira nas noites. E vendo suas crianças à vontade, os adultos também relaxaram.

 Um dia, seis meses depois daquela noite terrível, Amélia estava ensinando um grupo de mulheres a fazer remédios de ervas quando olhou ao redor e viu algo milagroso. Ali, em sua casa humilde, havia vida, risadas de crianças no quintal, homens consertando uma cerca juntos, mulheres compartilhando receitas e histórias, comunhão verdadeira.

Olhe o que fizemos”, disse ela a Teodoro naquela noite, os dois sentados na varanda assistindo ao pôr do sol. “Você fez”, corrigiu ele. “Você trouxe vida para este lugar. Nós fizemos”, insistiu ela. “Juntos, sempre juntos”. Foi então que chegaram as notícias da vila.

 Seu Joaquim, o dono da venda, apareceu numa tarde trazendo suprimentos que Teodoro havia encomendado, mas trouxe também informação. Damião foi embora, disse ele, aceitando o café que Amélia oferecia. Vendeu a ferraria e partiu. Dizem que foi para Fortaleza tentar recomeçar. Teodoro absorveu a notícia em silêncio. Sentia nada, nem satisfação, nem tristeza.

apenas uma espécie de fechamento. E tem mais, continuou seu Joaquim. O coronel Justino morreu, ataque do coração. O filho dele, que é mais moderno, assumiu: diz que quer trazer progresso para a região, que as velhas formas têm que mudar. “O que isso significa para nós?”, perguntou Amélia. Significa que vocês têm um aliado agora, não um inimigo.

 O jovem coronel ouviu falar do que fazem aqui, de como ajudam as pessoas. Diz que é isso que a região precisa. Depois que seu Joaquim partiu, Teodoro e Amélia ficaram na varanda processando as mudanças. O mundo ao redor deles estava se transformando, mas eles permaneciam constantes, ancorados um no outro. “Quer saber de uma coisa?”, disse Amélia depois de um longo silêncio.

 O quê? Acho que estou grávida. Teodoro virou-se tão rápido que quase derrubou a cadeira. O quê? Ela estava sorrindo, aquele sorriso que iluminava seu rosto inteiro. Acho que estou esperando um bebê. Não tenho certeza ainda, mas todos os sinais estão lá.

 Teodoro ficou paralisado processando um bebê, uma criança, sua criança, dele e de Amélia. Depois de tudo que haviam passado, depois de toda a dor e luta, a vida estava lhes dando apenas um recomeço, mas um futuro. “Você tem certeza?”, perguntou sua voz embargada. “Bastante certeza. Vamos saber com mais segurança em algumas semanas.” Ele a puxou para seus braços.

 segurando-a com uma ternura que contrastava com sua força. “Um bebê”, murmurou em seu cabelo. “Vamos ter um bebê.” Vamos, confirmou ela, e estava chorando, mas eram lágrimas de pura alegria. Naquela noite, deitados juntos na rede que agora compartilhavam, falaram sobre nomes, sobre como seria, sobre o futuro que estavam criando, não apenas para eles, mas para a nova vida que viria.

 “Será diferente para nosso filho”, disse Teodoro. Ele ou ela crescerá cercado de amor, de comunidade. Não saberá a solidão que conhecemos e saberá que cicatrizes não definem uma pessoa”, adicionou Amélia, “Que o que importa é o coração. Você me ensinou isso”, disse ele, virando-se para olhá-la na penumbra.

 me ensinou que eu era mais que minhas marcas, mais que meu passado. “Você me ensinou que lar não é um lugar”, respondeu ela. “É uma pessoa. Você é meu lar, Teodoro, e você é o meu.” Os meses passaram em uma sucessão de dias trabalhosos, mas felizes. A barriga de Amélia cresceu e com ela cresceu também a expectativa. Teodoro ficou ainda mais protetor, quase não a deixando fazer nada pesado.

 Ela reclamava, mas secretamente adorava a atenção. A comunidade que havia se formado ao redor da fazenda celebrou com eles. As mulheres traziam roupinhas de bebê que haviam costurado. Os homens ajudaram Teodoro a construir um berço de madeira entalhado com cuidado e amor. A fazenda esquecida havia se tornado o coração pulsante da região.

 E então, numa noite de lua cheia no final de setembro, Amélia entrou em trabalho de parto. Teodoro entrou em pânico, correndo de um lado para o outro, até que dona Maria, uma parteira experiente que havia se mudado para perto, o expulsou do quarto. “Você vai deixá-la nervosa”, disse a mulher firmemente. Vá esperar lá fora e reze.

 Teodoro passou as horas mais longas de sua vida na varanda, caminhando de um lado para o outro, sobressaltando-se a cada grito vindo de dentro. Outros membros da comunidade vieram fazer-lhe companhia, oferecendo palavras de encorajamento que ele mal ouvia. Foi quando o sol estava nascendo, pintando o céu de rosa e dourado, que finalmente ouviu o choro de um bebê. forte, saudável, indignado.

 E então a porta se abriu e dona Maria apareceu sorrindo largamente. É uma menina, anunciou. E tanto a mãe quanto a criança estão bem. Teodoro entrou como se estivesse flutuando. Amélia estava na cama, exausta, mas radiante, segurando um pequeno embrulho nos braços. Quando ele se aproximou, ela puxou o tecido para revelar o rosto minúsculo de sua filha. Era perfeita.

 Pele avermelhada, cabelo escuro, os olhos fechados, mas o rosto mostrando uma expressão determinada mesmo em sono. Os dedos minúsculos se abriam e fechavam, procurando. “Quer segurá-la?”, perguntou Amélia. Com mãos trêmulas, Teodoro pegou a criança. Era tão pequena, tão frágil, mas quando a segurou contra o peito, sentiu algo se completar dentro dele.

 Esta era sua família. Esta era sua razão de viver. “Como vamos chamá-la?”, perguntou, incapaz de desviar os olhos da filha. Helena, disse Amélia, por causa da luz, porque ela nasceu com o sol nascendo. Helena, repetiu Teodoro, testando o nome. Perfeito. Ela é perfeita.

 A bebê abriu os olhos, então, olhos escuros que pareciam ver direto em sua alma. E Teodoro jurou silenciosamente que protegeria aquela criança com cada respiração, que se certificaria de que ela crescesse em um mundo melhor do que aquele em que ele havia crescido. Os meses seguintes foram uma mistura caótica de noites sem dormir, fraldas sujas e uma alegria tão intensa que às vezes doía.

 Ver Amélia com Helena, cantando canções de Ninar enquanto a embalava, fazia o coração de Teodoro transbordar. Ver sua filha crescer, ganhar peso, começar a sorrir, era assistir a um milagre diário. E a comunidade abraçou a criança como se fosse de todos. Havia sempre alguém para ajudar, para segurar o bebê, enquanto Amélia descansava, para trazer comida ou presentes.

 Helena não cresceria sozinha, teria dezenas de tios e tias, uma família estendida, que escolhera estar ali. Foi num dia de dezembro, quando Helena tinha 3 meses, que padre Cipriano apareceu inesperadamente. Teodoro ficou tenso. Memórias da última vez que autoridades religiosas haviam interferido ainda frescas. Mas o velho padre levantou as mãos em gesto pacífico.

 “Vim fazer uma proposta”, disse ele. “Não uma exigência, uma proposta.” Estamos ouvindo”, disse Amélia, segurando Helena protetoramente. “Gostaria de oferecer uma bênção para vocês três como família. Não casamento forçado, não um julgamento, apenas uma bênção, um reconhecimento diante de Deus do amor, que é óbvio para qualquer um que os veja.” Teodoro e Amélia trocaram olhares.

 “Por que agora?”, perguntou Teodoro. Por que mudou de ideia? O padre suspirou, parecendo subitamente muito velho, porque estava errado, porque passei a vida seguindo regras e esqueci de ver o que realmente importa. Vocês me ensinaram isso, o modo como amam ao outro, como servem a comunidade, como criaram algo bonito do nada.

 Isso é divino, com ou sem bênção da igreja? Mas se quiserem minha bênção, será uma honra dá-la. Amélia olhou para Teodoro, uma pergunta silenciosa em seus olhos. Ele assentiu. Aceitamos, disse ela, não porque precisamos, mas porque apreciamos o gesto.

 E assim, numa cerimônia simples com toda a comunidade presente, padre Cipriano abençoou a família. Não foi um casamento tradicional, mas foi algo mais profundo. Foi um reconhecimento, uma celebração, um fechamento de ciclo e início de outro. Enquanto o padre falava palavras de bênção, Teodoro olhou ao redor, viu pessoas que haviam se tornado amigos, quase família.

 viu a fazenda transformada, não mais um lugar de exílio, mas um santuário. Viu Amélia ao seu lado, Helena, em seus braços, e soube, com certeza absoluta que havia encontrado seu lugar no mundo. Os anos seguintes trouxeram mais mudanças. A seca finalmente quebrou com chuvas abundantes que transformaram a catinga em jardim.

A fazenda prosperou e com ela a comunidade ao redor. Outras crianças nasceram, incluindo mais duas para Teodoro e Amélia, um menino que chamaram de João e depois outra menina, Clara. Helena cresceu forte e decidida, sem medo das cicatrizes do pai, apenas curiosa sobre as histórias por trás delas.

 João era quieto e contemplativo, passando horas observando os pássaros e plantas do sertão. E Clara, a caçula, era um furacão de energia e risadas. Teodoro as amava com uma ferocidade que surpreendia até ele mesmo. Ensinou-as a respeitar a terra, a valorizar trabalho honesto, a julgar pessoas pelo caráter e não pela aparência.

 E elas o adoravam, subindo em suas costas, segurando sua mão, não vendo as cicatrizes, apenas vendo o papai. Uma tarde, muitos anos depois daquela noite em que Amélia havia chegado, Teodoro estava na varanda observando suas três crianças brincarem no quintal. Helena, agora com 8 anos, ensinava os irmãos mais novos a fazer uma pipa.

 Suas risadas enchiam o ar, puras e despreocupadas. Amélia veio sentar-se ao seu lado e eles ficaram em silêncio confortável, apenas observando. Havia fios grisalhos em seu cabelo agora, linhas ao redor de seus olhos, mas para Teodoro, ela estava mais bonita do que nunca. “No que está pensando?”, perguntou ela pegando sua mão.

 Estava pensando em como era minha vida antes de você chegar, disse ele lentamente. Como era vazio, frio, como eu estava apenas sobrevivendo, não vivendo. E agora? Agora ele olhou para as crianças, para a casa que haviam construído juntos, para a comunidade que haviam ajudado a criar. Agora estou vivo, completamente, abundantemente vivo. Amélia encostou a cabeça em seu ombro.

 Sabe, às vezes ainda penso naquele anúncio. Procuro uma esposa. Não prometo riqueza, apenas teto e respeito. Você cumpriu sua promessa. Você também cumpriu a sua. De ficar, de fugir. Nunca pensei em fugir. Desde o momento em que cheguei, soube que estava em casa. Helena veio correndo, então a pipa finalmente pronta.

 Pai, vem ajudar a soltar. Teodoro levantou-se, deixando-se puxar pela filha. E, enquanto corria pelo quintal, segurando a linha da pipa, ouvindo as crianças gritarem de excitação, quando ela finalmente subiu, sentiu uma gratidão profunda pela vida que tinha. Não era a vida que havia imaginado quando jovem.

 Era melhor, era real, era construída sobre fundações de dor superada e amor conquistado. Era imperfeita, cheia de desafios diários, de trabalho duro e preocupações, mas era sua, dele e de Amélia, e era mais do que suficiente. Naquela noite, depois que as crianças foram dormir, Teodoro e Amélia ficaram na varanda como sempre faziam.

 O céu estava limpo, as estrelas brilhantes. A catinga cantava sua canção noturna de grilos e sapos. E entre eles havia paz. Teodoro disse Amélia suavemente. Sim, obrigada. Por quê? Por me ver, por me escolher, por construir esta vida comigo. Ele virou-se para ela, pegando seu rosto entre as mãos. Eu deveria agradecer a você.

 Você salvou minha vida, Amélia. Não apenas quando eu estava perdido na tempestade da solidão, mas todos os dias desde então. Você me ensinou que cicatrizes não são o fim da história, são apenas o começo de uma nova. Ela sorriu, aquele sorriso que ainda fazia seu coração acelerar depois de todos esses anos. Então somos iguais.

 Dois náufragos que encontraram terra firme um no outro. Para sempre, prometeu ele. Para sempre. Ela ecoou. E enquanto a lua subia no céu e o sertão respirava ao redor deles, dois corações que haviam sido quebrados e remendados batiam em sincronia. A fazenda que havia sido um exílio era agora um refúgio. A casa que havia conhecido apenas silêncio, agora transbordava de vida.

 E o homem que havia sido definido por suas cicatrizes havia aprendido que marcas na pele são apenas isso. Marcas, o que define uma pessoa é o que escolhe fazer com a dor, como escolhe amar, apesar dela. Teodoro Campos havia escrito um anúncio procurando uma esposa e havia encontrado muito mais. Havia encontrado parceira, amiga, amante, mãe de seus filhos.

 havia encontrado lar, havia encontrado propósito, havia encontrado a si mesmo. E Amélia Tavares, que havia respondido aquele anúncio movida por gratidão e memória, havia encontrado o amor que procurara a vida toda sem saber. Havia encontrado segurança, não em paredes ou dinheiro, mas em braços fortes e coração generoso. Havia encontrado liberdade na escolha de ficar.

 Juntos haviam transformado terra árida em jardim, solidão em comunidade, dor em beleza. Haviam provado que o sertão, por mais duro que fosse, não podia matar o amor verdadeiro, apenas o testava, o fortalecia, o tornava inquebrantável. E quando muito mais tarde, quando seus cabelos estavam brancos e seus corpos cansados, quando olhavam para trás para a vida que haviam vivido, não havia arrependimentos, apenas gratidão, pela tempestade que os trouxe juntos, pelas cicatrizes que os marcaram, mas não os definiram, pelo amor que escolheram todos os dias

através de toda aprovação. O sertão testemunha sua história e o sertão, como sempre, guardaria seus segredos. Mas para aqueles que conheceram Teodoro e Amélia, para a comunidade que eles ajudaram a criar, a história seria contada e recontada. Uma história de esperança, de recomeço, de dois corações áridos que aprenderam a florescer juntos.

 E no final, essa é a única história que importa. A história do amor que escolhe ficar quando seria mais fácil ir embora, do amor que vê além das cicatrizes, do amor que transforma deserto em oases, exílio em lar, sobrevivência em vida plena. Este é o legado de Teodoro e Amélia.

 E no coração do sertão, onde o calor é implacável, mas a vida persiste, sua história continua. nos filhos que criaram, na comunidade que nutriram, na terra que cultivaram com amor, porque no final o amor sempre vence, sempre persiste, sempre encontra um caminho mesmo no sertão, especialmente no sertão. Se esta história tocou seu coração, deixe nos comentários a palavra sertão para celebrar que o amor verdadeiro floresce até nas terras mais áridas.

Obrigado por permanecer até o final e manter viva a chama dessas histórias de época que celebram a força do amor e da determinação humana. E lembre-se de se inscrever no canal Contos de Época para não perder nenhuma narrativa que toca a alma e aquece o coração.

 Ative o sininho das notificações e compartilhe com alguém que aprecia boas histórias. Porque assim como Teodoro encontrou Amélia através de uma simples carta, você pode encontrar alguém que precisa ouvir esta mensagem, que nunca é tarde para recomeçar, que cicatrizes contam histórias de sobrevivência e que o verdadeiro amor não foge diante das dificuldades.

 Até a próxima história, até o próximo encontro no sertão das emoções, onde cada conto é uma jornada e cada palavra é uma semente plantada no coração. Fiquem com Deus e que suas vidas sejam sempre preenchidas de histórias dignas de serem contadas. M.